Louise Bourgeois
Louise Bourgeois propõe a representação do corpo como veículo de uma enfabulação sem fim, enquanto estratégia única de( não)reconstrução da memória. Essa irrepresentabilidade da memória é um espaço ao mesmo tempo de resgate da representação, que assim se liberta de uma condição de substituição do acontecido(o hipotético representado). De modo mais simples dir-se-ía que cada forma ,nesta artista americana de origem francesa, nos conta uma história que prolongamos(e se prolonga) na medida em que vamos percepcionando cada contorno sem ser parte de uma linguagem, onde cada história existe desligada de todas as outras emanadas de outras formas.E cada conjunto formal é um universo estilístico própio.(Existe e nunca existe uma linguagem/estilo bourgeoisiano.)
Não é pois possivel pensar na arte de Bourgeois sem nos reportarmos áquilo que tem como fulcro a junção curto-circuitante da representação e da fisicalidade metafórica do corpo -- ou a representação de um espaço de segredo indesvendável como a«memória interior»(cujas fronteiras são determinadas apenas pela autora, desaparecendo portanto o interior e o exterior) – com a explosão das fábulas elas mesmas, autoreflexivamente; numa ampliação do sentido do corpo e, claro, da memória imateralizada.
Como poucas obras neste seculo, o que Louise Bourgeois nos propõe é, para além da superação da forma composicionalmente cristalizada enquanto forma racional e denegadora do mito, uma modalidade de representação do corpo, e do corpo da memória, onde o mito, como na sabedoria grega, nos interpreta para além da condenação da poesia em Platão, na República. O mito é como diria Marx, uma dominação das forças da natureza na imaginação.
Roberto Calasso assim escreve num dos ensaios do seu livro I Quaranta Nuove Graddini: «a oposição extrema seria esta: de um lado, um conhecimento a que hoje chamariamos de algorítmo (...); do outro, um conhecimento metafórico, mental, em que o conhecimento é um phatos que modifica o sujeito que sabe, um saber que nasce da imagem, do eidolon,e que culmina na imagem, sem nunca se afastar dela nem admitir um saber que lhe seja superior».Também aqui não há nenhum conhecimento superior que force a clarividência de um sentido, seja uno ou plural, para as obras de Louise Bourgeois, porque «se o mito é uma sequência de simulacros que ajudam a reconhecer os simulacros, é ingénuo pretender interpretar o mito, quando é o própio mito que nos interpreta»(Roberto Calasso, idem).
È pois sob a égide desse conhecimento metafórico que tento definir uma expressão estética que toma o corpo --- a memória e a memória do corpo --- como referente, e faço-o essencialmente por três vias. Recuando ás neovanguardas dos anos 60 e 70, reintrepetando as suas contraditórias direcções parte da sua riqueza) e expurgando-as, digamos assim, de vários estereótipos que se lhes colaram, como sejam a ideia teimosa da morte do autor, a da desmaterialização da arte, a da fusão entre a arte e a vida, ou a ideia ainda mais vazia e inoperante da progressão artistica sob o ritmo das rupturas.
Como primeira via, contra a tese da desmaterelização da arte avanço, por exempo, com a necessidade da presença da Forma e o reforço do lugar do espectador(bem como do autor). Esse é o primeiro dos princípios necessários para a efectivação de uma arte «do» e «com» o corpo.«Da» memória e «com» a memória. Mas deve considerar-se, subsequentemente, que toda a forma é, nos termos de Georges Bataille, informe.
Este pressuposto começa por ser demasiadamente evidente na obra paradigmática de Jackson Pollock, nomeadamente. Com ele e a partir de Bataille, relacionam-se os estudos teóricos de Rosalind Krauss, que propõe:«vamos pensar o “informe”não como uma entidade oponente à forma, mas antes uma possibiidade operando desde o fulcro da forma para esta se apagar a partir de dentro»(The Optical Unconscious,1993).
Do mesmo modo, segundo eixo argumentativo, toda a representação do corpo deve(considerar-se e)considerá-lo como um ser mortal, senão ficamo-nos pelas representações corporais idealizadas de que, entre outras movimentações, o fascismo se serviu e se serve. Por outro lado, em terceiro lugar, toda a representação do corpo pressupõe a construção duma identidade, mas tal construção tende, ao mesmo tempo que se edifica, à refutação e ao apagamento própio( escreve Julia Kristeva no seu Pouvoirs de L´Horreur,1980, ensaio sobre a abjecção: «”Eu” expulso-me a mim mesmo, cuspo-me fora, abjecciono-me a mim mesmo no seio do movimento em que “Eu” pretendo estabelecer-me. (...) dou nascimento a mim mesmo por entre a violência de soluços e de vómitos»).
Devemos ainda considerar que o estabelecimento de uma vontade programática de superação da fórmula arte e, consequentemente, uma vontade programática de superação da transparência óptica e pictória como elementos de presentificação da obra de arte,são factos determinantes de toda a arte moderna desde as vanguardas históricas( mas não confundir este programa com a mera desmaterialização da arte). Passando posteriormente esta carta de intenções, este superacionismo de mera visualidade e da forma concreta a alimentar toda a neovanguarda dos anos 60 e 70, desde o minimalismo à reacção feminista, instante doutrinário precursor das formas politizadas despontadas na primeira metade da decada de 80. O processo que denomino de contravisualidade( que passa por retirar a representação da mera função de mediação, ainda que se a devolva ao indizível ) é então um dos temas do séc.xx (mais do que a cosmogonia, de que fala Thomas McEviley, relacionando a modernidade, na sua heterodoxia, com uma busca das raízes harmoniosas do universo e do sentido do ser ), contravisualidade que, assim, preenche os espaços desde o formalismo até à actual arte do corpo --- que se distingue da body art a partir do instante em que considera o corpo, visão partilhada por muitos artistas, mais do que uma obra de arte, um campo de batalha.
Não há, como vimos, um primado da forma sem o seu correlativo entendimento metafórico. Mas mesmo admitindo um primado da forma enquanto entidade sem conteúdo e auto-referencial, ela não existe sem uma matricial perturbação psicológica, uma sensação de incompletude( a contravisualidade é aqui um prolongamento da visualidade ) e enfermidade que chamaremos de ansiedade, histeria ou angústia --- utilizando as palavras de Leo Steinberg que é, a este propósito, muito claro: «A arte moderna (...) nasce permanentemente da angústia, pelo menos a partir de Cézanne. Picasso afirmou que o fundamental em Cézanne, acima das suas telas, é a angústia. Para mim uma das funções da arte moderna é a de transmitir essa angústia ao espectador». De novo, encontramos nesta radicalização uma contravisualidade programática, e mais do que isso: uma contra-representacionalidade ( que é antes uma representacionalidade resgatada) e uma aversão absoluta à transparência.
É isso que unifica o disperso corpo de trabalho de Louise Bourgeois, desde o descritivismo do imperscrutável --- que a autora tenta, ou parece que tenta, desbravar, principalmente nos desenhos,aparentemente mais narrativos --- à desconstrutividade pós-minimal( para lá de qualquer sinal de pureza ) das esculturas.
Aqui sabemos que estamos perante algo que nega a experiência tal como proporcionada pelo diferimento inerente ás imagens representacionais; representa-se o que passou ou parte da memória e eventos presentes --- pelo menos seria assim até Bourgeois abrir outro caminho: o da coincidência e da simultaneidade entre o que se passou e não se passou, entre o passado e o futuro desconhecidos. Mas nunca é somente o corpo, a fisicalidade da escultura, o tema destes trabalhos --- perspassa por estas peças sempre algo de indecidível, o referido interior da memória. Espaço sem espaço, local sem habitabilidade fixa ou delimitável, sem reminiscência possível. Ou seja, nunca um «isto foi», em Louise Bourgeois, pode ser trazido para o objecto.
Concretamente disto são testemuho as «Cell»,environments que a artista tem produzido ao longo da década de 90: estas celas cumprem a função de nos informar que o interior da memória é um espaço habitado ( e a habitar pelo receptor ), sem sentido porquanto toda a temporalidade é de irrepetível e de impossivel restauração. Logo, presentificação.
A insustentabiidade (e autorecusa ) interpretativa das «Cell» de Bourgeois sinaliza a impossibilidade de reconfigurar a memória como um lugar com sentido traduzível por outros meios que não os da sua vivência já perdida( e conceptualmente definida num quadro que pode ser, por exemplo, o da neurose), e esse sem-sentido e sem-figura da memória é a prova de como esta ultrapassa a figuração do corpo e da sexualidade ( tema central de alguma arte de hoje que, noutro plano, determinados processos tecnológicos, mediáticos ou inclusivamente clínicos - de diagnóstico, por exemplo - cada vez mais e melhor permitem conhecer).
Diria que, em Louise Bourgeois, a garantia da sanidade que a arte assegura está no facto de elevar o não-sentido a um estatuto de plena autonomia estética: daí o seu cunho pessoal, o seu estilo sem código e uniformidade, o seu universo - demore o tempo que demorar a ser percepcionado (e, pelos vistos, muito tempo demorou), ele existe nos seus mais diversificados contornos. Por isso a arte de Bourgeois é dotada de uma autonomia estética associada a uma experiência de vida. Mas o seu irrepresentável ainda está presente e existe. Por isso pode dizer-se: sem figuração da memória e sem reconfiguração desta em forma de «obra», repetindo Foucault, seria a loucura o terreno disponível. Mas tal não acontece nesta escultora, apesar do seu trabalho processado no fio da navalha.
Ao ultrapassar os problemas fechados da vivência e da representação do corpo, bem como os da sujeição às várias formas do poder ( falocêntrico,entre outros ), Bourgeois afasta-se quer do pictorialismo de Sue Williams ou de Marlene Dumas, quer do neoaccionismo de Jean Antoni. Ou mesmo da mediatização enquanto retrato cruel do corpo e do seu funcionamento interior como obra de arte, tal como veremos nas instalações actuais de Mona Hatoum, para citar algumas artistas de recente revelação.
Mas alguns paralelismos importa sublihar e contextualizar. E Louise Bourgeois, em peças de décadas anteriores ou em trabalhos últimos, tal como em artístas Mona Hatoum, ou mesmo Jana Sterbak, o corpo não é proposto como um território completamente liberto e isolado. O que significa que junto à sua configuração / reconfiguração se imiscui a barreira fisica e significacional do« espaço»(para já não falar da passagem do corpo à condição de conceito) – o espaço interior do corpo, como em Hatoum, ou em entidade potencial para sucessivos actos de transgressão ( dos constrangimentos do própio corpo ), como em Jana Sterbak, por exemplo.
E teremos uma concepção multipla destes temas –que pode ser de natureza fisica( Mona Hatoum )ou simbólica( Louise Bourgeois ). Numa das suas obras paradigmáticas, que aliás deixou à beira do muito consagratório «Turner Prize» de 1995(não por acaso entregue a outro artista pós-escatológico, o mui jovem e famoso Damien Hirst), Mona Hatoum introduziu por todos os orifícios do seu corpo (desde o umbigo à boca, passando pelo ânus, nariz e vagina) uma minúcula câmara que registou os respectivos circuítos internos. A obra , a imagem real deste corpo interno, é depois exibida num espaço fechado(sinalizando ou registando os constrangimentos do corpo territorializado, em termos linguísticos, como diria Barthes, de género, ou da sua organicidade ), mas é exibida em diferido, videogravada: em segundo grau . É um produto de um outro produto da cultura mediática de massas, algo que se condena a reger de novo, apesar do impacto inicial, pelo primado do«ver» que, como diria Debord, se tornou o mecanismo sob o qual assentou a nossa civilização ocidental.
O corpo deixa de estar uma vez mais presente. Em seu lugar está uma representação, uma prótese, um substituto ( e estamos mesmo no campo do vivido afastado em representação, para citar de novo Debord) inevitavelmente esteticizado. Trata-se, diferentemente do que se passa em Louise Bourgeois, de uma passagem do material para o imaterial(Lyotard), enquanto nesta se passa do material( quase sempre, ainda que sem contornos precisos, autobiográfico) para algo que supera a imaterialidade – dissemo-lo, para o terrreno irreconstruível da memória, da infância e das relações familiares. Ou, de uma forma mais completa, em Bourgeois tudo - corpo, memória(biográfica), neurose e terapia(ou, pelo menos, exorcização) -- coexiste.
Assim, se tivermos de pensar numa autora actual programaticamente aproximável a Louise Bourgeois, melhor será falarmos de Jana Sterbak. Nesta, o corpo é algo cuja transgressão de limiares não se processa sem a consideração e inteligibilidade do constrangimento do espaço – circundante ou simbólico, como vimos. Mas a hibridização antevista em Sterbak( do corpo com o espaço, do corpo e seus fluídos identitários com os objectos de arte, do corpo e género, etc), não correponde a uma atenção, em Louise Bourgeois, pela problemáticaa exclusiva da sexualidade.
Nas representações de Bourgeois, com efeito, outros factores intervêm, para lá da intrínseca organicidade e do tópico dos géneros, como por exemplo o medo e a história pessoal ( ou memória, como tenho vindo a defenir ). Numa obra paradigmática, como«Cell (Choisy)», de 1990-1993, Bourgeois edifica nos parâmetros do environment uma réplica da casa paterna; aí num primeiro plano, suspende-se uma guilhotina. Nesta obra não se enuncia saída outra para o sentimento de crise neurótica senão a da abolição da temporalidade como modelo de exorcismo (que, contudo ou por isso mesmo, não esconde o passado). Neste exorcismo, neste esconjuramento do medo, deixa de haver vida presente ou passada( não vá uma trazer, inevitavelmente, a presença da outra), ou, genericamente, presente e passado, pois, como escreve Jacques Soulillou, «o “passado guilhotina o presente”, esse mesmo passado que jamais cessa de assediar esta obra ou de bater insistentemente à porta do presente, e que este enfim eliminará por sua vez – o presente aí guilhotinando o passado»( Jacques Soulillou, L´Impunité de L´Art, 1995).
Esta abolição do tempo, irreversível aniquilamento da temporalidade( pelo menos tal é intentado), afasta entretanto a obra do plano da representação do corpo, como se disse, para a situar num outro território interpretativo – a contextualização na histeria. Ou no conflito ( que para alguns autores não o é ) entre os espaços da neurose infantil (terreno do individuo e fechado) e os do chamado acesso directo à desterritorialização (do) inconsciente(terreno colectivo e aberto, porque fala da vida e da sexualidade sem as particularizar neste ou naquele indivíduo).
A neurose infantil, em Bourgeois, tem matizes autobiográficas ( o factor individual ) e ganéricas. Quanto ao aspecto genérico, toda a obra de Bourgeois pode ser lida como uma forma de guerrilha contra o primado do falo. É Freud quem define a génege deste problema: «O caracter principal desta “organização genital infantil” é simultaneamente o que a diferencia da organização genital definitiva do adulto. Reside isto em que, para os dois sexos, um só orgão genital, o orgão masculino, desempenha um papel. Portanto, não existe um primado genital, mas um primado do falo» (L´Organisation Génitale Infantile, 1923).
Retomando o outro tópico, várias formas de histeria se podem aqui configurar, desde as histerias de conversão (conflitos psíquicos associados a sintomas físicos), até às histerias de angústia: necessidade da arte como garantia da sanidade, frase que a autora inscreve num objecto de uma outra cela - «Cell 1», 1990 -, passando ainda pela necessidade de conceber o presente como elemento que destrói o passado, ou como elemento que destrúindo-o, exorcisa o medo sinalizado pela figura do pai. Uma obra de 1974 para tal aponta e intitula-se precisamente « The Destrution of the Father ».
Sabemos também que a histeria da angústia é figurada num objecto exterior, numa fobia. E é precisamente esse objecto exterior ( o pai e a sua amante, concretamente )que a autora deseja esconjurar. Registe-se apenas que há uma clara ligação entre o despontar ou redespontar do complexo edipiano, para que a autora aponta no titulo do seu trabalho, e a histeria. Nos depoimentos insertos no catálogo da retrospectiva de Paris, escreve a autora sobre esta obra: « Le but de La Destruction du père était d´exorciser la peur. Une fois que ça été présenté au public – et bien je me suis sentie différent. Je ne veux pas utiliser le terme thérapeutique mais en fait, exorciser cést une enterprise thérapeutique. Laraison de cette oeuvre était la catharsis ou la purification».
«The Destruction of the Father» pode ainda ter uma leitura associada ao complexo de castração, até porque a escultura se assemelha a uma vagina com dentes, a uma reentrancia preparada para a mutilação. Laplanche/Pontalis, no clássico Vocabulário de Psicanálise, descrevem esta forma de complexo de castração a partir da expressão inveja do pénis: «esta inveja do pénis assume no decorrer de Édipo, duas formas derivadas: desejo de adquirir um pénis dentro de si (principalmente sob a forma do desejo de ter um filho) e desejo de fruir um pénis no coito. A inveja do pénis pode redundar em numerosas formas patológicas ou sublimadas». Podemos, portanto, considerar, em síntese, que «The Destruction of the Father» é uma forma estética patológica que, enquanto forma estética, se apresenta sob modo sublimado (ainda que alguns autores contestem a presença analítica de uma sublimação na autora, a qual dizem tomar os processos inconcientes por via directa, pulsional e não desviante de energias, como a sublimação classicamente, por imperativos morais e societais, o requer).
Bourgeois ocupa , por inversão de papéis, o lugar do rapaz neste esquema da angústia da castração ( pois, normalmente, é o rapaz que teme o poder do pai no acto potencial da castração como represália às suas descobertas sexuais). È ela que, entretanto, teme o pai ( e não deixa de contar inúmeras histórias sobre o seu sadismo), mas enfrenta-o com as suas armas de filha e de mulher. Como esta vagina com dentesda destruíção do pai não se trata de uma representação sádica do referido desejo de «fruir o pénis», desta obra se pode dizer que quer apenas colocar a mulher numa posição de força perante todo o tipo de agressões ( daí a aderência do feminismo a alguns momentos da carreira de Bourgeois – o inverso já é, de todo, problemático).
Contudo, a catarse e a purificação referidas parecem confinar-se como que a um beco sem saída. Parecem apontar para a sua própia impossibilidade, pelo menos a julgar pelas própias palavras da artista. Sobre o conjunto das suas «celas», escreve Louise Bourgeois:«representam diferentes tipos de dores: fisicas, emocionais e psicológicas; mentais e intelectuais. Nenhum remédio nem desculpa para a dor. Eu sei que não a posso eliminar nem suprimi-la.La douleur, c´est mon affaire» ( Louise Bourgeois, Musée d´Art Moderne de la Ville de Paris, 1995).
Vejamos agora, retrospectivamente, como é que Louise Bourgeois se coloca perante a arte que acompanhou nos anos 60 e 70, nomeadamente a transição oposicional do minimalismo para o pós-minimalismo. Onde o minimalismo reivindica, com toda a intensidade, uma evidência estética essencialista, fenomenológica, neotranscendental (ou irracional) e táutológica para a obra artística, depreendemos uma sua inter-relação com o programa conceptualista de matriz linguística. Como vimos atrás, dois tópicos que Louise Bourgeois parece sem dúvida recusar – a que juntámos a imagética inerente aos processos da reprodutibilidade técnica ( a media landscape, de que fala Muntadas ).
Neste campo algo autista, de exaltação de uma fenomenologia programática para o campo da arte, sua definição e sua praxis, vamos encontrara autores como Donald Judd, Dan Flavin, Jonh McCracken, Carl Andre, Agnes Martin, Robert Barry, Joseph Kosuth, Sol LeWitt, Ellsworth Kelly, Walter de Maria, On Kawara, Douglas Huebler, Art & Language ou Lawrence Weiner. A mudança de paradigmas operada desde estes autores para um conjunto de pesquisas onde sobretudo gostaria de destacar Louise Bourgeois e Eva Hesse é constituída por novas atitudes coorespondentes a novas ocorrências políticas, ideológicase, claro, estéticas.
O minimalismo radical e fenemonológico de Judd, Andre e Flavin parte da noção de objecto específico auto-referencial. Da recusa da distinção disciplinar escultura- pintura e da negação da autoria artistica( isto é, da manualidade )em favor da serialização e da fabricação industrial como forma de aportar a uma essência universalista e imtemporal do objecto de arte. Como sabemos, este minimalismo fenemológico opera na convicção de que a arte é uma pré-existência à sua materialização, no abandono da narratividade e da significaçãod das imagens. Também o conceptualismo linguístico se procura legitimar a partir do seu interior, ou legitimar o que é e não é arte através do uso da linguagem. Esta matéria priveligiada originará aquilo que alguém chamaria de estética administrativa. Em contraposição evidente, o pós-minimalismo abandona, por assim dizer, o puritanismo pragmático, individualista e simplificador que domina toda a cultura americana.
Louise Bourgeois é uma protagonista maior desta transição, quando enuncia a importância das pulsões e impressões no acto da recepção ou no momento de produção da obra, de qualquer obra, desvinculando-se dos rigores neoconstrutivistas dos recentes raciocinios de Rosalind Krauss (principalmente no seu estudo sobre Cindy Sherman), ao mesmo tempo que ultrapassou, noutro tempo e geração, a pureza greenberguiana.
Negando a fenomenologia minimal e as posturas auto-reflexivas, autointerpretativas e, principalmente, autopunitivas do conceptualismo linguístico, tal como a media landscape do neoconceptualismo (anos 80), ela abre a arte ao terreno de exercitação do que em psicanálise denominamos de id, o reservatório primitivo da energia psíquica. Seguindo-se a exigência estético-conceptual que Bourgeois remete para a valorização do primado das sensações: a produção de objectos contra a interpretação.
A perspectiva psicanalítica parece ser válida para o entendimento deste espaço de produtividade, que se pretende sem finalidade e sem censura. Contudo, um forte criticismo da interpretação psicanalítica em torno de Bourgeois surge de Bernard Marcadé, comissário da mega-exposição Fémininmasculin:Le sexe de l´art. Considera Marcadé («Le devenir-femme de l´art»,catálogo ) que estas interpretações psicanalíticas redundam falaciosas. Sobretudo, em torno de uma arte desterritoralizada das configurações contemporâneas de matérias e formas, e que se reivindica a si mesma como terapia formulando uma relação directa e sem mediações com o inconsciente.
Mas podemos em seguida perguntar porque é que esta reivindicada terapia (exorcisasão do medo, arte como garantia de sanidade,etc ) exclui a leitura analítica? Ou porque é que exclui uma definição da criação, em Bourgeois particularmente, de acordo com os mecanismos do id, tal como definidos pela mais básica teoria psicanalítica?
Ou, quando muito e seguindo este criticismo, não será mais interessante pensar que o trabalho de Louise Bourgeois tem de passar pela leitura analítica para melhor desconstruir o própio falocentrismo freudiano? Ou o falocentrismo tout court,tão bem castigado na magnífica fotografia de Mapplethorpe, onde Bourgeois transporta sorridentemente, e debaixo do braço, domada( ou , neste caso, «dominado»), a sua escultura – falo «Fillette».Ou não será antes, retomando a presença psicanalítica, que aí, nessa imagem de Mapplethorpe, a escultora transporta debaixo do braço, vencidos, a sua queda e o seu fracasso(a inveja do pénis)?
«Mon travail à ses débuts c´était la peur de la chute,puis cela devint l´art de la chute.»
(1996-1998)
( IMAGENS SEM DISCIPLINA, Carlos Vidal, págs.54-62 )
Louise Bourgeois propõe a representação do corpo como veículo de uma enfabulação sem fim, enquanto estratégia única de( não)reconstrução da memória. Essa irrepresentabilidade da memória é um espaço ao mesmo tempo de resgate da representação, que assim se liberta de uma condição de substituição do acontecido(o hipotético representado). De modo mais simples dir-se-ía que cada forma ,nesta artista americana de origem francesa, nos conta uma história que prolongamos(e se prolonga) na medida em que vamos percepcionando cada contorno sem ser parte de uma linguagem, onde cada história existe desligada de todas as outras emanadas de outras formas.E cada conjunto formal é um universo estilístico própio.(Existe e nunca existe uma linguagem/estilo bourgeoisiano.)
Não é pois possivel pensar na arte de Bourgeois sem nos reportarmos áquilo que tem como fulcro a junção curto-circuitante da representação e da fisicalidade metafórica do corpo -- ou a representação de um espaço de segredo indesvendável como a«memória interior»(cujas fronteiras são determinadas apenas pela autora, desaparecendo portanto o interior e o exterior) – com a explosão das fábulas elas mesmas, autoreflexivamente; numa ampliação do sentido do corpo e, claro, da memória imateralizada.
Como poucas obras neste seculo, o que Louise Bourgeois nos propõe é, para além da superação da forma composicionalmente cristalizada enquanto forma racional e denegadora do mito, uma modalidade de representação do corpo, e do corpo da memória, onde o mito, como na sabedoria grega, nos interpreta para além da condenação da poesia em Platão, na República. O mito é como diria Marx, uma dominação das forças da natureza na imaginação.
Roberto Calasso assim escreve num dos ensaios do seu livro I Quaranta Nuove Graddini: «a oposição extrema seria esta: de um lado, um conhecimento a que hoje chamariamos de algorítmo (...); do outro, um conhecimento metafórico, mental, em que o conhecimento é um phatos que modifica o sujeito que sabe, um saber que nasce da imagem, do eidolon,e que culmina na imagem, sem nunca se afastar dela nem admitir um saber que lhe seja superior».Também aqui não há nenhum conhecimento superior que force a clarividência de um sentido, seja uno ou plural, para as obras de Louise Bourgeois, porque «se o mito é uma sequência de simulacros que ajudam a reconhecer os simulacros, é ingénuo pretender interpretar o mito, quando é o própio mito que nos interpreta»(Roberto Calasso, idem).
È pois sob a égide desse conhecimento metafórico que tento definir uma expressão estética que toma o corpo --- a memória e a memória do corpo --- como referente, e faço-o essencialmente por três vias. Recuando ás neovanguardas dos anos 60 e 70, reintrepetando as suas contraditórias direcções parte da sua riqueza) e expurgando-as, digamos assim, de vários estereótipos que se lhes colaram, como sejam a ideia teimosa da morte do autor, a da desmaterialização da arte, a da fusão entre a arte e a vida, ou a ideia ainda mais vazia e inoperante da progressão artistica sob o ritmo das rupturas.
Como primeira via, contra a tese da desmaterelização da arte avanço, por exempo, com a necessidade da presença da Forma e o reforço do lugar do espectador(bem como do autor). Esse é o primeiro dos princípios necessários para a efectivação de uma arte «do» e «com» o corpo.«Da» memória e «com» a memória. Mas deve considerar-se, subsequentemente, que toda a forma é, nos termos de Georges Bataille, informe.
Este pressuposto começa por ser demasiadamente evidente na obra paradigmática de Jackson Pollock, nomeadamente. Com ele e a partir de Bataille, relacionam-se os estudos teóricos de Rosalind Krauss, que propõe:«vamos pensar o “informe”não como uma entidade oponente à forma, mas antes uma possibiidade operando desde o fulcro da forma para esta se apagar a partir de dentro»(The Optical Unconscious,1993).
Do mesmo modo, segundo eixo argumentativo, toda a representação do corpo deve(considerar-se e)considerá-lo como um ser mortal, senão ficamo-nos pelas representações corporais idealizadas de que, entre outras movimentações, o fascismo se serviu e se serve. Por outro lado, em terceiro lugar, toda a representação do corpo pressupõe a construção duma identidade, mas tal construção tende, ao mesmo tempo que se edifica, à refutação e ao apagamento própio( escreve Julia Kristeva no seu Pouvoirs de L´Horreur,1980, ensaio sobre a abjecção: «”Eu” expulso-me a mim mesmo, cuspo-me fora, abjecciono-me a mim mesmo no seio do movimento em que “Eu” pretendo estabelecer-me. (...) dou nascimento a mim mesmo por entre a violência de soluços e de vómitos»).
Devemos ainda considerar que o estabelecimento de uma vontade programática de superação da fórmula arte e, consequentemente, uma vontade programática de superação da transparência óptica e pictória como elementos de presentificação da obra de arte,são factos determinantes de toda a arte moderna desde as vanguardas históricas( mas não confundir este programa com a mera desmaterialização da arte). Passando posteriormente esta carta de intenções, este superacionismo de mera visualidade e da forma concreta a alimentar toda a neovanguarda dos anos 60 e 70, desde o minimalismo à reacção feminista, instante doutrinário precursor das formas politizadas despontadas na primeira metade da decada de 80. O processo que denomino de contravisualidade( que passa por retirar a representação da mera função de mediação, ainda que se a devolva ao indizível ) é então um dos temas do séc.xx (mais do que a cosmogonia, de que fala Thomas McEviley, relacionando a modernidade, na sua heterodoxia, com uma busca das raízes harmoniosas do universo e do sentido do ser ), contravisualidade que, assim, preenche os espaços desde o formalismo até à actual arte do corpo --- que se distingue da body art a partir do instante em que considera o corpo, visão partilhada por muitos artistas, mais do que uma obra de arte, um campo de batalha.
Não há, como vimos, um primado da forma sem o seu correlativo entendimento metafórico. Mas mesmo admitindo um primado da forma enquanto entidade sem conteúdo e auto-referencial, ela não existe sem uma matricial perturbação psicológica, uma sensação de incompletude( a contravisualidade é aqui um prolongamento da visualidade ) e enfermidade que chamaremos de ansiedade, histeria ou angústia --- utilizando as palavras de Leo Steinberg que é, a este propósito, muito claro: «A arte moderna (...) nasce permanentemente da angústia, pelo menos a partir de Cézanne. Picasso afirmou que o fundamental em Cézanne, acima das suas telas, é a angústia. Para mim uma das funções da arte moderna é a de transmitir essa angústia ao espectador». De novo, encontramos nesta radicalização uma contravisualidade programática, e mais do que isso: uma contra-representacionalidade ( que é antes uma representacionalidade resgatada) e uma aversão absoluta à transparência.
É isso que unifica o disperso corpo de trabalho de Louise Bourgeois, desde o descritivismo do imperscrutável --- que a autora tenta, ou parece que tenta, desbravar, principalmente nos desenhos,aparentemente mais narrativos --- à desconstrutividade pós-minimal( para lá de qualquer sinal de pureza ) das esculturas.
Aqui sabemos que estamos perante algo que nega a experiência tal como proporcionada pelo diferimento inerente ás imagens representacionais; representa-se o que passou ou parte da memória e eventos presentes --- pelo menos seria assim até Bourgeois abrir outro caminho: o da coincidência e da simultaneidade entre o que se passou e não se passou, entre o passado e o futuro desconhecidos. Mas nunca é somente o corpo, a fisicalidade da escultura, o tema destes trabalhos --- perspassa por estas peças sempre algo de indecidível, o referido interior da memória. Espaço sem espaço, local sem habitabilidade fixa ou delimitável, sem reminiscência possível. Ou seja, nunca um «isto foi», em Louise Bourgeois, pode ser trazido para o objecto.
Concretamente disto são testemuho as «Cell»,environments que a artista tem produzido ao longo da década de 90: estas celas cumprem a função de nos informar que o interior da memória é um espaço habitado ( e a habitar pelo receptor ), sem sentido porquanto toda a temporalidade é de irrepetível e de impossivel restauração. Logo, presentificação.
A insustentabiidade (e autorecusa ) interpretativa das «Cell» de Bourgeois sinaliza a impossibilidade de reconfigurar a memória como um lugar com sentido traduzível por outros meios que não os da sua vivência já perdida( e conceptualmente definida num quadro que pode ser, por exemplo, o da neurose), e esse sem-sentido e sem-figura da memória é a prova de como esta ultrapassa a figuração do corpo e da sexualidade ( tema central de alguma arte de hoje que, noutro plano, determinados processos tecnológicos, mediáticos ou inclusivamente clínicos - de diagnóstico, por exemplo - cada vez mais e melhor permitem conhecer).
Diria que, em Louise Bourgeois, a garantia da sanidade que a arte assegura está no facto de elevar o não-sentido a um estatuto de plena autonomia estética: daí o seu cunho pessoal, o seu estilo sem código e uniformidade, o seu universo - demore o tempo que demorar a ser percepcionado (e, pelos vistos, muito tempo demorou), ele existe nos seus mais diversificados contornos. Por isso a arte de Bourgeois é dotada de uma autonomia estética associada a uma experiência de vida. Mas o seu irrepresentável ainda está presente e existe. Por isso pode dizer-se: sem figuração da memória e sem reconfiguração desta em forma de «obra», repetindo Foucault, seria a loucura o terreno disponível. Mas tal não acontece nesta escultora, apesar do seu trabalho processado no fio da navalha.
Ao ultrapassar os problemas fechados da vivência e da representação do corpo, bem como os da sujeição às várias formas do poder ( falocêntrico,entre outros ), Bourgeois afasta-se quer do pictorialismo de Sue Williams ou de Marlene Dumas, quer do neoaccionismo de Jean Antoni. Ou mesmo da mediatização enquanto retrato cruel do corpo e do seu funcionamento interior como obra de arte, tal como veremos nas instalações actuais de Mona Hatoum, para citar algumas artistas de recente revelação.
Mas alguns paralelismos importa sublihar e contextualizar. E Louise Bourgeois, em peças de décadas anteriores ou em trabalhos últimos, tal como em artístas Mona Hatoum, ou mesmo Jana Sterbak, o corpo não é proposto como um território completamente liberto e isolado. O que significa que junto à sua configuração / reconfiguração se imiscui a barreira fisica e significacional do« espaço»(para já não falar da passagem do corpo à condição de conceito) – o espaço interior do corpo, como em Hatoum, ou em entidade potencial para sucessivos actos de transgressão ( dos constrangimentos do própio corpo ), como em Jana Sterbak, por exemplo.
E teremos uma concepção multipla destes temas –que pode ser de natureza fisica( Mona Hatoum )ou simbólica( Louise Bourgeois ). Numa das suas obras paradigmáticas, que aliás deixou à beira do muito consagratório «Turner Prize» de 1995(não por acaso entregue a outro artista pós-escatológico, o mui jovem e famoso Damien Hirst), Mona Hatoum introduziu por todos os orifícios do seu corpo (desde o umbigo à boca, passando pelo ânus, nariz e vagina) uma minúcula câmara que registou os respectivos circuítos internos. A obra , a imagem real deste corpo interno, é depois exibida num espaço fechado(sinalizando ou registando os constrangimentos do corpo territorializado, em termos linguísticos, como diria Barthes, de género, ou da sua organicidade ), mas é exibida em diferido, videogravada: em segundo grau . É um produto de um outro produto da cultura mediática de massas, algo que se condena a reger de novo, apesar do impacto inicial, pelo primado do«ver» que, como diria Debord, se tornou o mecanismo sob o qual assentou a nossa civilização ocidental.
O corpo deixa de estar uma vez mais presente. Em seu lugar está uma representação, uma prótese, um substituto ( e estamos mesmo no campo do vivido afastado em representação, para citar de novo Debord) inevitavelmente esteticizado. Trata-se, diferentemente do que se passa em Louise Bourgeois, de uma passagem do material para o imaterial(Lyotard), enquanto nesta se passa do material( quase sempre, ainda que sem contornos precisos, autobiográfico) para algo que supera a imaterialidade – dissemo-lo, para o terrreno irreconstruível da memória, da infância e das relações familiares. Ou, de uma forma mais completa, em Bourgeois tudo - corpo, memória(biográfica), neurose e terapia(ou, pelo menos, exorcização) -- coexiste.
Assim, se tivermos de pensar numa autora actual programaticamente aproximável a Louise Bourgeois, melhor será falarmos de Jana Sterbak. Nesta, o corpo é algo cuja transgressão de limiares não se processa sem a consideração e inteligibilidade do constrangimento do espaço – circundante ou simbólico, como vimos. Mas a hibridização antevista em Sterbak( do corpo com o espaço, do corpo e seus fluídos identitários com os objectos de arte, do corpo e género, etc), não correponde a uma atenção, em Louise Bourgeois, pela problemáticaa exclusiva da sexualidade.
Nas representações de Bourgeois, com efeito, outros factores intervêm, para lá da intrínseca organicidade e do tópico dos géneros, como por exemplo o medo e a história pessoal ( ou memória, como tenho vindo a defenir ). Numa obra paradigmática, como«Cell (Choisy)», de 1990-1993, Bourgeois edifica nos parâmetros do environment uma réplica da casa paterna; aí num primeiro plano, suspende-se uma guilhotina. Nesta obra não se enuncia saída outra para o sentimento de crise neurótica senão a da abolição da temporalidade como modelo de exorcismo (que, contudo ou por isso mesmo, não esconde o passado). Neste exorcismo, neste esconjuramento do medo, deixa de haver vida presente ou passada( não vá uma trazer, inevitavelmente, a presença da outra), ou, genericamente, presente e passado, pois, como escreve Jacques Soulillou, «o “passado guilhotina o presente”, esse mesmo passado que jamais cessa de assediar esta obra ou de bater insistentemente à porta do presente, e que este enfim eliminará por sua vez – o presente aí guilhotinando o passado»( Jacques Soulillou, L´Impunité de L´Art, 1995).
Esta abolição do tempo, irreversível aniquilamento da temporalidade( pelo menos tal é intentado), afasta entretanto a obra do plano da representação do corpo, como se disse, para a situar num outro território interpretativo – a contextualização na histeria. Ou no conflito ( que para alguns autores não o é ) entre os espaços da neurose infantil (terreno do individuo e fechado) e os do chamado acesso directo à desterritorialização (do) inconsciente(terreno colectivo e aberto, porque fala da vida e da sexualidade sem as particularizar neste ou naquele indivíduo).
A neurose infantil, em Bourgeois, tem matizes autobiográficas ( o factor individual ) e ganéricas. Quanto ao aspecto genérico, toda a obra de Bourgeois pode ser lida como uma forma de guerrilha contra o primado do falo. É Freud quem define a génege deste problema: «O caracter principal desta “organização genital infantil” é simultaneamente o que a diferencia da organização genital definitiva do adulto. Reside isto em que, para os dois sexos, um só orgão genital, o orgão masculino, desempenha um papel. Portanto, não existe um primado genital, mas um primado do falo» (L´Organisation Génitale Infantile, 1923).
Retomando o outro tópico, várias formas de histeria se podem aqui configurar, desde as histerias de conversão (conflitos psíquicos associados a sintomas físicos), até às histerias de angústia: necessidade da arte como garantia da sanidade, frase que a autora inscreve num objecto de uma outra cela - «Cell 1», 1990 -, passando ainda pela necessidade de conceber o presente como elemento que destrói o passado, ou como elemento que destrúindo-o, exorcisa o medo sinalizado pela figura do pai. Uma obra de 1974 para tal aponta e intitula-se precisamente « The Destrution of the Father ».
Sabemos também que a histeria da angústia é figurada num objecto exterior, numa fobia. E é precisamente esse objecto exterior ( o pai e a sua amante, concretamente )que a autora deseja esconjurar. Registe-se apenas que há uma clara ligação entre o despontar ou redespontar do complexo edipiano, para que a autora aponta no titulo do seu trabalho, e a histeria. Nos depoimentos insertos no catálogo da retrospectiva de Paris, escreve a autora sobre esta obra: « Le but de La Destruction du père était d´exorciser la peur. Une fois que ça été présenté au public – et bien je me suis sentie différent. Je ne veux pas utiliser le terme thérapeutique mais en fait, exorciser cést une enterprise thérapeutique. Laraison de cette oeuvre était la catharsis ou la purification».
«The Destruction of the Father» pode ainda ter uma leitura associada ao complexo de castração, até porque a escultura se assemelha a uma vagina com dentes, a uma reentrancia preparada para a mutilação. Laplanche/Pontalis, no clássico Vocabulário de Psicanálise, descrevem esta forma de complexo de castração a partir da expressão inveja do pénis: «esta inveja do pénis assume no decorrer de Édipo, duas formas derivadas: desejo de adquirir um pénis dentro de si (principalmente sob a forma do desejo de ter um filho) e desejo de fruir um pénis no coito. A inveja do pénis pode redundar em numerosas formas patológicas ou sublimadas». Podemos, portanto, considerar, em síntese, que «The Destruction of the Father» é uma forma estética patológica que, enquanto forma estética, se apresenta sob modo sublimado (ainda que alguns autores contestem a presença analítica de uma sublimação na autora, a qual dizem tomar os processos inconcientes por via directa, pulsional e não desviante de energias, como a sublimação classicamente, por imperativos morais e societais, o requer).
Bourgeois ocupa , por inversão de papéis, o lugar do rapaz neste esquema da angústia da castração ( pois, normalmente, é o rapaz que teme o poder do pai no acto potencial da castração como represália às suas descobertas sexuais). È ela que, entretanto, teme o pai ( e não deixa de contar inúmeras histórias sobre o seu sadismo), mas enfrenta-o com as suas armas de filha e de mulher. Como esta vagina com dentesda destruíção do pai não se trata de uma representação sádica do referido desejo de «fruir o pénis», desta obra se pode dizer que quer apenas colocar a mulher numa posição de força perante todo o tipo de agressões ( daí a aderência do feminismo a alguns momentos da carreira de Bourgeois – o inverso já é, de todo, problemático).
Contudo, a catarse e a purificação referidas parecem confinar-se como que a um beco sem saída. Parecem apontar para a sua própia impossibilidade, pelo menos a julgar pelas própias palavras da artista. Sobre o conjunto das suas «celas», escreve Louise Bourgeois:«representam diferentes tipos de dores: fisicas, emocionais e psicológicas; mentais e intelectuais. Nenhum remédio nem desculpa para a dor. Eu sei que não a posso eliminar nem suprimi-la.La douleur, c´est mon affaire» ( Louise Bourgeois, Musée d´Art Moderne de la Ville de Paris, 1995).
Vejamos agora, retrospectivamente, como é que Louise Bourgeois se coloca perante a arte que acompanhou nos anos 60 e 70, nomeadamente a transição oposicional do minimalismo para o pós-minimalismo. Onde o minimalismo reivindica, com toda a intensidade, uma evidência estética essencialista, fenomenológica, neotranscendental (ou irracional) e táutológica para a obra artística, depreendemos uma sua inter-relação com o programa conceptualista de matriz linguística. Como vimos atrás, dois tópicos que Louise Bourgeois parece sem dúvida recusar – a que juntámos a imagética inerente aos processos da reprodutibilidade técnica ( a media landscape, de que fala Muntadas ).
Neste campo algo autista, de exaltação de uma fenomenologia programática para o campo da arte, sua definição e sua praxis, vamos encontrara autores como Donald Judd, Dan Flavin, Jonh McCracken, Carl Andre, Agnes Martin, Robert Barry, Joseph Kosuth, Sol LeWitt, Ellsworth Kelly, Walter de Maria, On Kawara, Douglas Huebler, Art & Language ou Lawrence Weiner. A mudança de paradigmas operada desde estes autores para um conjunto de pesquisas onde sobretudo gostaria de destacar Louise Bourgeois e Eva Hesse é constituída por novas atitudes coorespondentes a novas ocorrências políticas, ideológicase, claro, estéticas.
O minimalismo radical e fenemonológico de Judd, Andre e Flavin parte da noção de objecto específico auto-referencial. Da recusa da distinção disciplinar escultura- pintura e da negação da autoria artistica( isto é, da manualidade )em favor da serialização e da fabricação industrial como forma de aportar a uma essência universalista e imtemporal do objecto de arte. Como sabemos, este minimalismo fenemológico opera na convicção de que a arte é uma pré-existência à sua materialização, no abandono da narratividade e da significaçãod das imagens. Também o conceptualismo linguístico se procura legitimar a partir do seu interior, ou legitimar o que é e não é arte através do uso da linguagem. Esta matéria priveligiada originará aquilo que alguém chamaria de estética administrativa. Em contraposição evidente, o pós-minimalismo abandona, por assim dizer, o puritanismo pragmático, individualista e simplificador que domina toda a cultura americana.
Louise Bourgeois é uma protagonista maior desta transição, quando enuncia a importância das pulsões e impressões no acto da recepção ou no momento de produção da obra, de qualquer obra, desvinculando-se dos rigores neoconstrutivistas dos recentes raciocinios de Rosalind Krauss (principalmente no seu estudo sobre Cindy Sherman), ao mesmo tempo que ultrapassou, noutro tempo e geração, a pureza greenberguiana.
Negando a fenomenologia minimal e as posturas auto-reflexivas, autointerpretativas e, principalmente, autopunitivas do conceptualismo linguístico, tal como a media landscape do neoconceptualismo (anos 80), ela abre a arte ao terreno de exercitação do que em psicanálise denominamos de id, o reservatório primitivo da energia psíquica. Seguindo-se a exigência estético-conceptual que Bourgeois remete para a valorização do primado das sensações: a produção de objectos contra a interpretação.
A perspectiva psicanalítica parece ser válida para o entendimento deste espaço de produtividade, que se pretende sem finalidade e sem censura. Contudo, um forte criticismo da interpretação psicanalítica em torno de Bourgeois surge de Bernard Marcadé, comissário da mega-exposição Fémininmasculin:Le sexe de l´art. Considera Marcadé («Le devenir-femme de l´art»,catálogo ) que estas interpretações psicanalíticas redundam falaciosas. Sobretudo, em torno de uma arte desterritoralizada das configurações contemporâneas de matérias e formas, e que se reivindica a si mesma como terapia formulando uma relação directa e sem mediações com o inconsciente.
Mas podemos em seguida perguntar porque é que esta reivindicada terapia (exorcisasão do medo, arte como garantia de sanidade,etc ) exclui a leitura analítica? Ou porque é que exclui uma definição da criação, em Bourgeois particularmente, de acordo com os mecanismos do id, tal como definidos pela mais básica teoria psicanalítica?
Ou, quando muito e seguindo este criticismo, não será mais interessante pensar que o trabalho de Louise Bourgeois tem de passar pela leitura analítica para melhor desconstruir o própio falocentrismo freudiano? Ou o falocentrismo tout court,tão bem castigado na magnífica fotografia de Mapplethorpe, onde Bourgeois transporta sorridentemente, e debaixo do braço, domada( ou , neste caso, «dominado»), a sua escultura – falo «Fillette».Ou não será antes, retomando a presença psicanalítica, que aí, nessa imagem de Mapplethorpe, a escultora transporta debaixo do braço, vencidos, a sua queda e o seu fracasso(a inveja do pénis)?
«Mon travail à ses débuts c´était la peur de la chute,puis cela devint l´art de la chute.»
(1996-1998)
( IMAGENS SEM DISCIPLINA, Carlos Vidal, págs.54-62 )
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