sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

L'Origine du monde

Gustave Courbet: L'Origine du monde (1866)


Raul Rabaça

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

O cérebro electrónico_arte e tecnologia

O cérebro eletrônico-ARTE E TECNOLOGIA_arte comtemporânea com novos mídias
Seria possível simular os estados mentais em um computador? Basicamente, é essa a formulação proposta pelo artista multimídia norte-americano Bill Seaman. Mas esta é apenas a primeira questão rumo ao entendimento de como funciona a consciência humana, anseio que vem provocando pensadores de diversos campos do conhecimento desde a criação da filosofia moderna por René Descartes. O significado de uma palavra acha-se em permanente estado de devir, sendo entendido por um observador como parte de um fluxo contínuo de experiências que entra também em relação com as percepções dos outros e com a história dos fluxos que determinam sua compreensão.
Ao invés de supormos o "observador" como fato consumado, interessa-nos examinar como a construção contínua da linguagem através da criação de padrões multimodais e da ação recíproca entre os outros e o eu constitui uma pré-condição para toda afirmação significativa. Em nossos diálogos, a Dra. Andrea Gaugusch e eu chamamos essa abordagem de Cibernética de Ordem Aberta (5). Essa perspectiva auto-reflexiva sobre a produção de significado procura conscientizar-se das conjeturas culturais e sociais que determinam a compreensão - onde a linguagem se mescla e estrutura a experiência de modo aberto e contínuo. Esperamos realizar um cuidadoso circuito auto-reflexivo em direção a nossas ações significativas já realizadas para melhor ponderarmos sobre uma série de conceitos internos à essa estrutura linguística construída (6). Interessa-nos pesquisar como nossos conceitos sobre "alguma coisa" chegam a existir. Talvez esse seja o aspecto mais importante da tentativa de definir o modelo para um computador eletroquímico. Através de um conjunto de processos abertos e não-estáticos, somos obrigados a examinar cuidadosamente uma série de pressupostos levantados por nós, podendo potencialmente alterar nossa compreensão e, por sua vez, aplicar os novos conhecimentos a uma série de domínios diversos (7). Nesse caso, a deslocação ilumina a colocação. A contínua articulação do modelo começa a sugerir formas pelas quais poderíamos nos re-compreender de maneira aberta.O presente ensaio é um convite à formação de uma equipe de pesquisa interdisciplinar. Aponto também as artes, as novas tecnologias de sensibilidade e a realidade virtual como ferramentas potenciais para possibilitar e ampliar essa abordagem auto-reflexiva de modo contínuo.Devemos estar cientes das implicações de questões específicas relacionadas ao desenvolvimento de uma auto-reflexividade maquínica consciente. A pesquisa sobre o desenvolvimento de uma consciência contextual com base na máquina mostra-se fundamental, assim como o potencial para novas abordagens incorpadas de sistemas de aprendizagem tais como o Cog de Rodney Brook (e equipe de pesquisa relacionada), do grupo humanóide/robótico do MIT (9). Contudo, de modo diverso ao Cog, interessa-nos o desenvolvimento de um substrato eletroquímico (10). Tal projeto estimula uma consciência incorpada das ramificações da sensibilidade humana visando a promover um crescimento humano permanente e uma maior auto-compreensão. Talvez seja importante para um artista envolver-se em uma esfera tão improvável na medida em que a poética da situação sugere o potencial para a produção de novos conhecimentos, apesar da fabricação de tal modelo, no mais alto nível de relevância biológica, encontrar-se fora do alcance das práticas científicas e tecnologias existentes.Um Corpoensamento é uma unidade mente/corpo construída durante toda uma vida de processos de formação/enquadramento recíprocos (11). Um "padrão" percebido consiste na habilidade de um sentido específico (ou conjunto de sentidos) funcionar juntamente ao Corpoensamento para registrar mudanças que se dão no tempo. Esse resíduo de padrão pode também ser operado de dentro do sistema (de modo oposto às perturbações ambientais), estabelecendo uma abordagem mesclada ao contexto, que faz a ponte entre interação histórica (formação/enquadramento recíproco e incorpado; e memória) com o contexto local e formação/enquadramento conceitual/linguístico. Gregory Bateson, em "Ecology of Mind" (12), descreveu o conceito de reforço contínuo de padrão como "redundância". O Ambiente Corpoensamento é um ambiente que se encontra embutido em outro maior. Uma relação incorpada com os outros, o eu e o ambiente revela-se fundamental para a produção contínua de padrões espaço-temporais multimodais. A linguagem enquanto sistema aberto constitui um subconjunto desse fluxo de padrões e, no entanto, mistura-se profundamente a toda experiência enquanto mecanismo contextualizante projetivo. A linguagem e a compreensão estão sempre intricadas em um fluxo de devir. (Seaman e Gaugusch discutiram esse conceito detalhadamente (ver 1).Cada sentido fornece um conjunto diferente de relações físicas ou estimulações de padrões espaço-temporais que são entendidas por via biológica. Edelman, no livro "Neural Darwinism", em 1987, afirmou:Os sinais de entrada são abstraídos e filtrados pelos transdutores sensórios (sensory transducers), extratores de traços característicos (feature extractors) e correlatores de traços característicos (feature correlators) (principalmente sistemas sensiomotores) que formam elementos de um sistema de mapeamento global. Grupos neuronais ativos em repertórios específicos recebendo tais sinais são selecionados competitivamente em detrimento de outros. (13)A capacidade de vários sentidos registrarem mudanças de estado no decorrer do tempo possibilita a formação de um padrão de estimulação incorpado, físico e orientado pelo contexto. Será que sempre que encontramos um conjunto semelhante ou afim de qualidades ambientais, ou instâncias recontextualizadas semelhantes, recorremos à nossa história de incidentes similares baseada na memória (nossos resíduos "redundantes" de mudança de estado) e à auto-reflexão relativa a tais incidentes para criarmos pensamentos atuais? Edelman continua:A seleção bem sucedida consiste em alterar a eficácia sináptica daquelas porções da rede que correspondem a tais grupos, para que haja uma maior probabilidade de respostas a sinais semelhantes ou idênticos em um momento futuro. (14)Edelman propõe o seguinte:A coordenação e o reforço de padrões de seleção de grupos neuronais devem ocorrer entre várias regiões do cérebro mapeadas localmente. Isto é obtido através da sinalização fásica sobre conexões anatômicas reentrantes entre regiões mapeadas (15). (...) Uma hipótese central à teoria é a de que a categorização perceptiva deve ao mesmo tempo preceder e acompanhar a aprendizagem (16). (...) Uma das tarefas fundamentais do sistema nervoso é conduzir categorizações perceptivas adaptativas em um mundo não-rotulado - quando a ordem macroscópica e a organização dos objetos (e mesmo sua definição ou discriminação) não podem ser figuradas antecipadamente para um organismo, apesar de tais objetos e eventos obedecerem às leis da física. Assume-se que uma condição necessária para tal categorização perceptiva seja a reentrada entre sistemas paralelos separados de mapas locais servindo a modalidades diferentes, cada qual sendo capaz de retirar amostras de um domínio de estímulos de modo independente e disjuntivo. Porém, de modo geral, as condições suficientes para a categorização perceptiva são fornecidas somente quando um número de tais mapas se liga para formar mapeamentos globais de ordem maior, involvendo tanto o sistema sensório quanto o motor. (17)Será que realizamos combinações de padrões multi-modais por via biológica e respondemos de forma apropriada com base na recombinação emergente dessa história fragmentária incorpada de experiências e reflexões, compreensões e abstrações registradas? Até onde podemos modelar os processos que estão em operação aqui? Poderia um computador eletroquímico ser articulado de modo a funcionar basicamente de forma semelhante? Chamarei aqui esse computador eletroquímico, sua articulação incorpada e unificada e seu sistema de sensibilidade incorpado e unificado de Ambiente Corpoensamento.Surge a pergunta: estamos falando realmente de um computador? A maioria dos computadores que conhecemos não possui a flexibilidade da unidade mente/corpo humana para funcionar em estado quase caótico de mudanças contextuais relevantes e instantâneas. Babbage e Lovelace, no entanto, procuraram bem cedo fazer "computadores" maquínicos: a Máquina Diferencial e a Máquina Analítica. O "computador" que eles contemplavam e estavam abstratamente moldando era um ser humano: uma pessoa que usa os pensamentos para fazer cálculos. Em 1842, Lovelace conjeturou a noção de que uma máquina calculadora poderia ser também empregada para explorar processos estéticos operativos 18. Como artista, parece-me importante incluir tal foco na construção de nosso modelo - a criatividade é essencial à consciência. É importante notar que os modelos de computador analógico de Babbage e Lovelace ultrapassaram em muito os meios tecnológicos de produção da época.Em minha pesquisa, dois projetos maiores servem de referência ao projeto atual: The World Generator / The Engine of Desire, com o programador Gideon May (um sistema virtual de geração de mundo que explora significados emergentes) e um segundo trabalho em andamento: The Poly-sensing Environment. Nessa pesquisa em andamento com Mark Hansen, Statistical CS em UCLA e Ingrid Verbauwhede, EE em UCLA, temos explorado a criação de uma ferramenta para articular o chamado sistema de percepção maquínico. No humano, sentidos múltiplos operam juntos ou relacionados entre si de maneira freqüente. Assim, dois ou mais padrões de base temporal, obtidos através de relações físicas/ambientais são registrados em relação um ao outro e, potencialmente, reforçam-se mutuamente, transformando-se em fluxos produtores de mudanças de estado. Seria possível modelar um computador eletroquímico que, funcionando em combinação com um ambiente de sensibilidade polivalente, pudesse refletir esse conjunto de processos multimoldais? A unidade do Corpoensamento é essencial. Particularmente, cada sentido registra um campo específico de pertubações. Isso significa que certas relações ambientais estimulam sentidos múltiplos (o abarcamento de campos) e o padrão dessa estimulação reforça o modo como chegamos a reagir e/ou entender aquele conjunto específico de instâncias repetidas ou um conjunto relacionado.Gordon Pask, em seu livro "An Approach to Cybernetics", de 1961, explorou a noção da criação de um computador químico. Afirmou: "Os computadores químicos surgem da possibilidade de fazer crescer uma rede evolucionária ativa por meio de um processo eletroquímico" (19). Como poderíamos produzir uma forma específica de crescimento e/ou construção relacionada à função, para facilitar a produção de nosso modelo?Em 1981, Otto Rössler, em seu ensaio "An Artificial Cognitive Map System" (20) delineou uma abordagem eletrônica fascinante que reunia um scanner digital e um simulador de vôo para produzir um primeiro sistema de mapas cognitivos que indicasse o relacionamento da memória de contexto com o contexto explorado em tempo real. Seu ensaio mais recente, entitulado "Nonlinear Dynamics, Artificial Cognition and Galactic Export" esboça uma abordagem de sistemas de dinâmica não-linear ao problema da cognição artificial (21). O interesse de Rössler pela endofísica tem grandes implicações para uma nova compreensão do relacionamento mente/cérebro/corpo/ambiente. Seu livro "Endophysics - The World as Interface" é fascinante e delineia conceitos que apóiam sua abordagem. Pelo fato de a endofísica ser altamente diferente da exofísica, procuramos desenvolver um conjunto paralelo de ambientes virtuais que são reciprocamente interativos - isso será tema de um ensaio posterior.Scott Kelso também articulou uma abordagem de sistemas dinâmicos em seu livro "Dynamic Patterns -The Self-Organization of Brain and Behaviour". Ele afirma:Apenas sistemas que são bombeados ou energizados a partir de fora (ou, como os sistemas vivos que possuem maquinaria metabólica, do interior e do exterior) são capazes de produzir os tipos de padrões e estruturas que nos interessam. São chamados sistemas abertos, não-equilibrados: abertos por poderem interagir com seu ambiente, trocando energia, matéria ou informação com seu entorno; e não-equilibrados por não conseguirem manter sua estrutura ou função sem tais fontes. (22)Kelso continua:Nos últimos vinte anos, houve enorme progresso na compreensão de como se formam padrões nos sistemas abertos e não-equilibrados, especialmente por meu amigo e colega Hermann Haken. Graças a ele e a outros, mostrou-se que a matéria comum, sob certas condições, exibe propriedades de vida. Haken introduziu o termo sinergética em uma conferência realizada na Universidade de Stuttgart, em 1969. A Sinergética é um campo interdisciplinar que se interessa pela cooperação das partes individuais de um sistema que produz estruturas macroscópicas espaciais, temporais ou funcionais. Lida com processos determinísticos e estocásticos. (23)Voltando momentaneamente ao nosso conceito de sensibilidade maquínica, considero relevante a discussão de Turing sobre "órgãos de entrada" e de "saída", em sua descrição do ACE (Automatic Computing Engine) (24). Uma abordagem assim incorpada é essencial para o nosso modelo. Contudo, Turing também originou um conjunto diferente de conceitos, de relevância para o presente projeto, que transcende a noção de "programação" como a conhecemos. Kelso discute um ensaio interessante de Turing que é desconhecido para muitas pessoas. Afirma:Lembro-me de um cientista renomado que sempre argumentava que o cérebro não era uma máquina Turing. Quando observei em uma de suas palestras que havia uma outra máquina Turing, mostrou-se bastante inflexível: "Não, há apenas um Turing. Você sabe, o Turing da máquina Turing!" Após escrever na lousa algumas equações que descreviam padrões químicos, deteve-se e olhou para mim. "Ah! Vejo o que quer dizer", retrucou. As equações que ele havia escrito no quadro eram exatamente as que Turing usara para descrever "as bases químicas da morfogênese", em um ensaio publicado em 1952.Kelso continua:O termo "dois Turings" refere-se ao gênio que, por um lado, fez contribuições importantes para os computadores programáveis e, por outro, mostrou como padrões podem surgir na natureza sem nenhum programador. Só recentemente os padrões prognosticados por Turing foram observados experimentalmente, e a teoria de Turing ainda ocupa uma posição relevante na Biologia do Desenvolvimento. (25)Kelso sugere que "tal formação espontânea de padrões é exatamente o que queremos dizer com auto-organização: o sistema se organiza, mas não existe um eu, um agente dentro do sistema conduzindo a organização." (26)Como poderia o nosso computador eletroquímico ser construído e crescer de tal modo que viesse a refletir a profunda complexidade da estruturação biológica humana? Será que devemos explorar também uma éspecie de genética sintética?Kelso desenvolve um argumento forte que poderia ser aplicado à produção de nosso modelo para um computador eletroquímico em termos de espaço de fase. Ele postula:Um sistema dinâmico vive em um espaço de fase que inclui todos os estados possíveis desse sistema e a maneira como eles evoluem no tempo. Um sistema dinâmico dissipativo se configura como um sistema cujo volume de espaço de fase diminui (dissipa-se) com o tempo. Isto significa que alguns lugares (subconjuntos no espaço de fase) são preferíveis a outros. Eles são chamados de atratores: não importa qual seja o valor inicial de x, o sistema convergirá para o atrator a medida que o tempo fluir ao infinito. Por exemplo, se alguém estica uma mola ou desloca um pêndulo amortecido, eles irão eventualmente perder o momentum e parar na posição de equilíbrio. O atrator é em ambos os casos o ponto fixo, ou atrator de ponto simples. (27)Kelso prossegue:Resumindo, as abordagens tradicionais à compreensão de processos cognitivos e perceptivos enfatizam estruturas representacionais estáticas que minimizam as dependências temporais e ignoram a natureza potencialmente dinâmica de tais representações. As experiências atuais, que variam da percepção visual à da fala, constituem um testamento surpreendente dos conceitos básicos da dinâmica auto-organizada, tais como parâmetros de controle, transições, atratores, multi-estabilidade, instabilidade e histerese. O objetivo é revelar mecanismos genéricos aplicados através de deixas particulares, modalidades e categorias e, assim, unificar um amplo conjunto de dados e fornecer uma base coerente para a previsão de efeitos contextuais. (28)Desse modo, a particularidade do nosso modelo crescerá potencialmente à medida que o potencial mapeador da tecnologia crescer. Uma questão difícil relaciona-se à noção de especificidade ou de resolução do sistema: a consciência emerge apenas em decorrência da mistura de todos os aspectos da complexidade biológica operacional? Um nível qualquer de reducionismo funcional nos impediria de atingir nosso objetivo de emergência de uma consciência maquínica ou, em outras palavras, de auto-reflexividade profunda e consciência de contexto?Kelso continua:Finalmente, gostaria de deixar o leitor com o que espero seja uma imagem útil, criada pelo amálgama desses modelos dinâmicos. Trata-se, como era de se esperar, da imagem de uma paisagem atratora em evolução, modelada por uma rede complicada de tecidos nervosos interconectados. A tensão na rede e a localização das suas fibras individuais são sujeitas a padrões de ativação e inibição que se deslocam e esculpem o layout do atrator que, como veremos, representa padrões meta-estáveis, em larga escala, de atividade neuronal no cérebro. (29)Portanto, podemos fazer um computador eletroquímico que emula tais conceitos? Junto à granularidade específica da equação, há outros problemas que precisam ser abordados. Em termos de eventos em micro-escala, Kelso fornece o seguinte no que se refere às sinapses e neurônios elementares:Um crescente número de evidências sugere que os neurônios podem comunicar-se sem estabelecer um contato íntimo nas sinapses. Ao invés de informações que fluindo por vias estruturadas, tais como a eletricidade por fios em um circuito, tal comunicação, chamada de transmissão em volume, assemelha-se mais a uma transmissão de rádio. (30)Como podemos começar a projetar uma abordagem que inclua a natureza dessa forma específica de funcionalidade biológica? Kelso afirma:(...) O cérebro é fundamentalmente um sistema auto-organizado, formador de padrões, governado por leis dinâmicas não-lineares passíveis de serem descobertas. Mais especificamente, comportamentos como percepção, compreensão, ação, aprendizagem e memória surgem como padrões espaço-temporais e meta-estáveis de atividade cerebral que são, por sua vez, produzidos por interações cooperativas entre agrupamentos neuronais. A auto-organização constitui o princípio chave. (31)Ele continua:Acredito que apenas certos tipos de sonda experimental nos trarão insight sobre os processos auto-organizadores no cérebro e como eles se relacionam ao comportamento. Lembramos aqui do desafio de Otto Rössler aos neurocientistas, de que em um sistema complexo como o cérebro (com mais variáveis do que a idade do universo em segundos), é quase um milagre achar dinâmicas de baixa dimensão. É este, porém, o milagre que estamos procurando. Em minha opinião, é a ação cooperativa dos neurônios, funcionando juntos para criar padrões dinâmicos no cérebro, que permite a ocorrência desse milagre. (32)Kelso articula sua posição a seguir:Padrões Espaço-Temporais do Cérebro - O cérebro é uma estrutura de extensão espacial e altamente conectada. Medidas da dimensão de correlação de dados obtidos em uma ou algumas posições (não obstante teoremas matemáticos) são, portanto, limitadas. É necessário encontrar meios de tratar sinais que emanam de locais diferentes do cérebro e sua complexa evolução temporal. Para obtermos uma compreensão assim detalhada do cérebro, especialmente de sua auto-organização funcional precisamos, como já argumentei, de três coisas:-um conjunto de conceitos teóricos apropriados para motivar a abordagem da atividade cerebral; -uma tecnologia que proporcione a análise de dinâmicas de formação de padrões no cérebro, no espaço e no tempo; -e algumas experiências limpas que suprimam as complicações e retenham a essência. (33)Portanto, se queremos mapear no mais alto nível as operações que caracterizam o trabalho do Corpoensamento humano, o potencial é começar a formular um modelo para, então, fabricar um Ambiente Corpoensamento relevante. Uma das questões mais difíceis, novamente, trata de abordagens redutivas na construção do modelo em oposição a tentativas de trabalhar para a construção de um modelo com um conjunto de processos operativos paralelo ao dos humanos. De modo diverso a grande parte das experiências científicas do passado, que procuravam isolar atividades neuronais particulares, devemos considerar novas abordagens à dedução de mapas de fluxo multimodal e desenvolver tecnologias relacionadas de mapeamento.Thelen e Smith ampliam e elaboram pragmaticamente um conjunto de idéias diretamente relacionadas ao pensamento de Kelso. Eles definem em seu livro "A Dynamic Systems Approach to the Development of Cognition and Action" um conjunto de observações pertinentes, baseadas parcialmente no pensamento de Edelman:O pensamento é incorpado, ou seja, as estruturas usadas para montar nosso sistema conceitual surgem da experência corporal e fazem sentido a partir dela; além disso, o cerne do nosso sistema conceitual acha-se enraizado diretamente na percepção, no movimento corporal e em experiências de natureza física e social.O pensamento é imaginativo, na medida em que os conceitos que não estão diretamente enraizados na experiência empregam metáfora, metonímia e imagens mentais, as quais ultrapassam (...) a representação da realidade externa.O pensamento apresenta uma estrutura ecológica. A eficiência do processamento cognitivo, como na aprendizagem e na memória, depende da estrutura geral do sistema conceitual e do que os conceitos significam. O pensamento é, portanto, mais do que apenas a manipulação mecânica de símbolos abstratos. (...)A razão humana não é apenas uma instanciação da razão transcendental; cresce a partir da natureza do organismo e de tudo o que contribui para sua experiência individual e coletiva: sua herança genética, a natureza do ambiente em que vive, a maneira como funciona nesse ambiente, a natureza de seu funcionamento social, etc. Thelen e Smith, ao discutir os conceitos de Edelman, lembram que "Edelman faz cinco reivindicações centrais sobre a origem das categorias":(a) o sistema é degenerado - há processos múltiplos disjuntivos que operam sobre a mesma entrada em tempo real;(b) as categorias se desenvolvem a partir do mapeamento reentrante dessas amostras disjuntivas do espaço perceptual;(c) o fazer se dá por meio das correlações em tempo real que existem por entre as amostras independentes;(d) os mapas reentrantes dependem da atividade - o que percebemos depende do que fazemos segundo uma função "time-locked"; e(e) há sempre variabilidade no sistema. A variabilidade é anatômica, resultando da alta conectividade no sistema, e dinâmica. A variabilidade dinâmica decorre da atividade contínua intrínseca no sistema nervoso central e da natureza contínua e cambiante da entrada, que assegura que o sistema nunca esteja no mesmo estado duas vezes. 35Como definir um modelo que réune em si essas observações? A noção de observar o Corpoensamento em relação aos padrões dinâmicos parece ser um método frutífero que poderia potencialmente ser abstraído para servir de base à produção de nosso modelo. A lista de observações acima serve de referência para a formação de um conjunto de problemas prementes a serem resolvidos.Thelen e Smith fornecem uma visão fascinante da memória:Cada memória é construída dinamicamente a partir de muitas, porém não de todas as conexões previamente facilitadas e, na condição de atrator dinâmico pode também "puxar para dentro" associações não incluídas previamente naquela categoria dinâmica. Devido ao fato de as categorias perceptuais serem elas também probabilísticas e determinadas pelo contexto, o mesmo se dá com as memórias que são baseadas nessas categorias por sua vez fluidas e inexatas. A memória não funciona como uma máquina digital manipuladora de símbolos, mas sim como um sistema dinâmico. (36)Eles afirmam:Usaremos Edelman para apoiar nossos argumentos de que:(1) durante o desenvolvimento, o comportamento é selecionado a partir de um universo mais amplo de possibilidades ao invés de ser imposto;(2) mapeamentos dinâmicos de percepção-ação são primários no início da vida;(3) a exploração multimodal constitui um processo chave para a aquisição de novas formas; e(4) a criação e a exploração da variabilidade são elementos chave no processo. Continuam:Segundo Edelman, as categorias emergem da interação dinâmica de grupos de neurônios; os mapeamentos - as categorias - auto-organizam-se através de suas interações recíprocas. (38)Thelen e Smith postulam:A noção chave aqui é de que as funções globais de categorização - memória, aprendizagem e desempenho - surgem dinamicamente a partir dos mapeamentos reentrantes da atividade motora, juntamente com informações sensoriais de diversas modalidades. Mais especificamente, na fase inicial do desenvolvimento, os sinais sensoriais e de movimento se juntam completamente, agindo conjuntamente para formar os mapas globais que servem de base para o desenvolvimeto posterior - uma noção que surge não apenas na neurofisiologia do desenvolvimento visual, mas também nos estudos comportamentais de crianças. Antes de aplicarmos essas idéias aos aspectos específicos da fase inicial do desenvolvimento - andar, alcançar, conhecer objetos e adquirir linguagem - consideramos o status teórico das categarias e a ligação - via teoria de Edelman - entre a dinâmica global e a dinâmica neural no desenvolvimento. (39)Podemos motivar nosso corpo de maneiras específicas em resposta a padrões sensuais específicos. Esse movimento é também registrado como um padrão relacionado ao corpo/ambiental no decorrer do tempo. Contudo, devemos ter clareza de que tais padrões emergem e são compreendidos apenas como resultado de uma estrutura linguística (que, por sua vez, nasce de padrões) que se mistura também à formação desses fluxos de padrão (campos), determinando tanto sua percepção quanto sua articulação. O campo linguístico é sempre projetado sobre o ambiente no pensamento. Há sensações puras, não-nomeadas. Contudo, essencial a qualquer devir é a estrutura lingüística categórica. Pertubações historicamente não-contextualizadas (sensações puras) são entendidas constantemente em termos das categorias de reflexão que foram formadas reciprocamente . Essa acumulação é contínua, de forma que a compreensão sensual e a estrutura linguística encontram-se ambas em estado perpétuo de expansão recíproca conforme sua relação com o conhecimento ambiental. Isso não quer dizer que a linguagem não tenha seus limites em termos de articulação da experiência. Ultrapassar esses limites torna-se um dos problemas prementes que sugerem a necessidade de desenvolvermos nosso modelo para um computador eletroquímico. Desenvolvemos um tal modelo para melhor mostrar como realmente funcionamos. A tentativa de criar um tal modelo serve de base e amplia nossa compreensão da prática linguística.Esse registro e análise de estimulações sensuais múltiplas no decorrer do tempo forma padrões espaço-temporais de experiência. Certas compreensões emergem relacionadas a qualidades específicas e repetidas de comportamento e/ou relações ambientais (segundo estruturação/enquadramento lingüístico e relações mútuas de formação). Nossa aprendizagem via percepção de padrões (mistura de campos) e combinação de padrões (comparação de campos) começa no relacionamento com nosso entorno ambiental inicial, assim como nas relações sociais e culturais que nos são passadas pelos outros. Construímos nossa percepção intelectual do mundo através dessas camadas de estimulações orientadas pelo sentido, de uma maneira intra-ativa com os outros e com nosso ambiente - esse processo (acumulação) faz a ponte e amplia experiências incorpadas em termos de nossa forma de pensar linguísticamente estruturada, além de achar-se em expansão e transformação contínua e recíproca. Não podemos, tampouco, subestimar outros processos relevantes - abstração, dedução, abdução e inferência - processos conceituais que também participam do desenvolvimento intelectual. Isso sugere a necessidade de literalmente "educar" nosso computador eletroquímico como uma criança, com uma atitude de benevolência.Assim, nossas experiências incorpadas desses padrões sensuais via "ação recíproca" e/ou "formação mútua" elaboram uma estrutura lingüística para interpretar e agir no mundo 41. Esse processo serve de base para toda aprendizagem e compreensão, misturando a esfera biológica à social e cultural. A linguagem representa um conjunto específico de padrões que passa a fazer parte de nossa aprendizagem de padrões perceptivos e memória de percepção de padrões multi-modais (intra-campo). A linguagem possibilita a habilidade de reproduzir e/ou abstrair as qualidades que constituem tais padrões. A compreensão desses padrões acontece via corpo/mente (o Corpoensamento humano) e, sendo assim, estamos em unidade com nosso ambiente - uma unidade sujeito/objeto.42 Esse "entendimento de mundo" existe apenas via nossa formação linguística. Ele assume significados diferentes à medida que essa formação linguística cresce e se transforma - e, desse modo, o mundo se acha em constante estado de devir. A linguagem passa a ser um padrão de importância fundamental, na medida em que nos permite refletir e nos comunicar sobre todos os fluxos de padrões (um subconjunto específico de produção e recepção de padrões). Portanto, o uso da linguagem em grande medida surge da compreensão da aquisição de padrões no passado (estimulações sensuais registradas e enquadradas). Nós também aprendemos a gerar padrões, reproduzir padrões, abstrair e recombinar perturbações orientadas pelos sentidos para estimular outros padrões, ou nos comunicar posteriormente entre nós e com o mundo. Isso serve de base para a nossa habilidade de articular significados via muitas e diferentes formas e qualidades de troca ambiental, de estímulos e do que Gaugusch e Seaman, em "Open Order Cybernetics", chamaram de "formação recíproca". Em alguns casos, os padrões são gerados via corpo - a escrita a mão e a fala. De outra forma, usamos tecnologias divergentes e seus potenciais de geração de padrões. Vejo o potencial do computador de ampliar nossas idéias em torno da formação linguística, da compreensão e da transmissão como central à formação do modelo. Assim, essa forma aberta, contínua de linguajar o mundo amplia as noções em torno de acoplamento ontogênico. A Cibernética de Ordem Aberta procura estar aberta em sua contínua auto-compreensão linguística por intermédio de um re(sentir) do observador, e aberta também no que concerne a sua relação com a troca de energia, matéria e/ou informação com os seus entornos (ver Kelso acima). Em particular, o desenvolvimento desse modelo para uma tecnologia incorpada visa ampliar ativamente o auto-entendimento através de processos comunicativos interdisciplinares e de profunda auto-reflexão.1. Paráfrase de um ensaio a ser publicado: "(Re)Sensing the Observer - Offering an Open Order Cybernetics", de Andrea Gaugush e Bill Seaman.2. Ibid3. Joseph Kosuth em seu texto "Art After Philosophy" afirmou: "A função da arte foi primeiro levantada por Marcel Duchamp. (...) Com o ready-made autônomo, a arte mudou seu foco da forma da linguagem para o que estava sendo dito. Isso significa que mudou a natureza da arte de uma questão de morfologia para uma questão de função. Essa mudança, da aparência para a concepção, foi o começo da arte moderna e o começo da arte conceitual". Kosuth, Joseph, "Art after Philosophy" (1969) conforme Osborne, Peter, "Conceptual Art", Phaidon Press, 2002, NYC, pág. 233. Seaman, nesse ensaio, sugere a criação de uma "arte como uma forma de explorar o potencial de produção de uma consciência maquínica".
4. http://weber.ucsd.edu/~gbowker/classification/5. Do ensaio a ser publicado, "(Re)Sensing the Observer - Offering an Open Order Cybernetics", Andrea Gaugush e Bill Seaman6. ibid (1)7. ibid (1)8. ibid (1)9. ver http://www.ai.mit.edu/projects/humanoi-robotics-group/10. Ver também o conceito de Roy Ascott de Mídias Húmidas "Vivemos no limite, em complexas realidades mistas, entre ciberespaço e espaço material, entre partículas e pixels. Argumentaria que todo um novo substrato de nossa experiência vivida está sendo formado a partir da convergência impulsionada pela tecnologia de bits, átomos, neurônios, genes e o Big B.A.N.G. Do ponto de vista do artista isso está criando um novo universo de mídias. O primeiro estágio dessa convergência pode ser facilmente visto enquanto os dados digitalmente secos do computador se misturam à biologia molhada dos sistemas vivos, produzindo uma espécie de "mídia húmida". O advento da nanotecnologia, aproximando-se muito mais agora da vanguarda das nossas práticas materiais, traz uma nova dimensão à nossa ânsia construtiva de erguer novos mundos." http://www.btgiapan.org/links/001.htm111. ibid (1)12. Bateson Gregory, Steps to an Ecology of Mind, 1972, Chandler Publishing Company, San Francisco (p. 419-421)13. Edelman, G.M., Neural Darwinism, 1987, Basic Books Inc. Publishers, New York, (pg. 6)14. ibid, (pg. 6)15. ibid, (pg. 7)16. ibid, (pg. 7)17. ibid, (pg. 8)18. BABBAGE, C. 1961. "Charles Babbage and his Calculating Engines: Selected Writtings by Charles Babbage and others". New York: Dover Publications, Inc. (Lovelace conforme encontrado em) Babbage, 1961, p.249).19. Pask, Gordon, An Approach to Cybernetics Uma Abordagem da Cibernética com prefácio de Warren S. McCullock, (Massachusetts Institute of Technology) HARPER & BROTHERS, New York, 1961, (pg. 105) Ver também citado por Pask Technical Reports of Contract NONR 196c8cb1500751fe4fb8b05242785a9b06614edd1a24395c0a67a1a207efa709c0994684b5d01a5fb051917c3eafad (21), Elec. Eng. Research Labs., Univ. De Illinois. Também 18 e 32. Pask afirma também que D.M. MacKay desde cedo explorou elementos conectivos análogos em uma máquina de computação.20. Rössler, Otto, An Artificial Cognitive Map System um Sistema de Mapas Cognitivos Artificial, Bio Systems, 13 (1981) 203-209, Elsevier/North-Holland Scientific Publishers Ltd.21. Rössler, Otto, Nonlinear Dynamics, Artificial Cognition and Galactic Export Dinâmica Não-linear, Cognição Artificial e Exportação Galáctica , um ensaio de Rossler enviado a Seaman, Divisão de Química Teórica, DFH Universidade de Tubingen, Auf der Morgenstelle 8, 72076, Tübingen. F.R.G. Rössler, Otto, Endophysics - The World as Interface Endofísica - O Mundo como Interface, World Scientific, 1998 (datado Fev. 1999, 14 de Julho de 2003), enviado ao autor22. Kelso, J. A. Scott, Dynamic Patterns, The Self-Organization of Brain and Behavior (Padrões Dinâmicos, A Auto-Organização do Cérebro e do Comportamento) A Bradford Book, MIT Press, p.3623. Ibid (22) Kelso cita Haken como uma grande influência - reproduzo aqui sua referência a Haken de Padrões Dinâmicos: "Há agora mais de sessenta volumes na Springer Series in Synergetics, editada por Haken. Para um tratamento técnico excelente ver Haken H. (1983), Synergetics: An Introduction (Sinergética: Uma Introdução), 3a ed.; e (1984), Advanced Sinergetics (Sinergética Avançada), 2a ed. Berlim: Springer-Verlag. Uma introdução bastante legível e acessível é Haken, H. (1984). "The Science of Structure: Synergetics". New York: Van Nostrand Reinhold."24. TURING, A.M. 1986. Relatório ACE de 1946 de A.M. Turing e Outros Papéis. Volume 10. In: B.E. CARPENTER e R.W. DORAN, eds. The Charles Babbage Institute Reprint Series for the History of Computing (Série de Reimpressões do Instituto Charles Babbage para a História da Computação). Cambridge/Londres: MIT Press, p.36
25. Kelso, J. A. Scott, Dynamic Patterns, The Self-Organization of Brain and Behavior (Padrões Dinâmicos, a Auto-Organização do Cérebro e do Comportamento) A Bradford Book, MIT Press, 1988, p.426. ibid (pg. 8)27. ibid (pg. 53)28. ibid (pg. 212)29. ibid (pg. 218)30. ibid (pg.229)31. ibid (pg. 257)32. ibid (pg. 259)33. ibid (pg. 270). Esther Thelen e Linda B. Smith, A Dynamic System Approach to the Development of Cognition and Action, A Bradford Book, MIT Press, Massachussets, 1944 (pg. 165)35. ibid (pg. 167)36. ibid (pg. 203)38. ibid (pg. 143)39. ibid (pg. 160)41. ibid (1)42. ibid (1)43. ibid (1)
Autor (a) : Bill Seaman

arte e tecnologia

(...)Somos contemporâneos de um momento de reinvenção da relação arte-tecnologia, em que a hibridação entre arte, ciência e pensamento produz novos paradoxos e questões. Relação que não é nova, mas que sem dúvida é problematizada de forma aguda no contexto atual, em que a arte busca uma revitalização e acha nas tecnologias emergentes um campo de experimentação.Não basta uma nova tecnologia para se produzir uma nova estética.
Hoje, poderíamos dizer que a arte contemporânea em sua relação com o tecnológico passa por uma nova série de configurações, ou melhor, dissolução de fronteiras que se realiza em situações-limites produzidas por diferentes processos, geradores de objetos artísticos "paradoxais" a meio caminho entre o científico e o estético.Nos anos 60 e 70, o cinema experimental foi um desses lugares de dissolução e hibridação, quando artistas vindos de diferentes domínios faziam um "quase-cinema"(Hélio Oiticica) ou anti-cinema, antropofagia do tecnológico, experiências em super-8, filme (Andy Warhol, Michael Snow) e vídeo. Experiências que se voltavam para a pesquisa audiovisual, onde filme e vídeo não são usados como mero registro ou transposição de obras pré-existentes, mas como novo processo.O tecnoestético seria problematizado de forma aguda na chamada arte cinética e arte cibernética, que iria explorar componentes como a luz, o movimento, a cor. Experiências prolongadas pelas propostas ambientalistas dos anos 70, a land art , body art, e também pela videoarte, videoinstalações, arte eletrônica, vídeo dança e computer dance, filme-hologramas, enfim, na fusão de diferentes domínios.
A imagem pode funcionar como detonadora de narrativas e gags teóricas ou como suporte/matéria/componente da obra.
Nos anos 70 fazer vídeo, era descobrir o vídeo (Nam June Paik, Bill Viola), mas a videoarte só toma real impulso nos anos 80 (Viola, Garry Hill, Zbigniew Rybcynski). O vídeo experimental _a idéia do videoautor passa a ser reconhecido como domínio estético autônomo, domínio "impuro" em que imagens de diferentes origens, grafismos, sons, corpos, narrativas, performances se combinam, numa fusão de campos e mídias.
A proposta tanto de uma neutralização, seleção, "ecologia" das imagens e da memória quanto a problematização do seu saturamento é o motor na criação de "campos" e paisagens vídeo-digitais (compostas de frames, pixels, zappings e sampleamentos), fragmentos de informação e ruídos que podem compor uma "paisagem" mental, a "little quarter" ou cela real/virtual onde o artista convida o público a descondicionar os olhos. Os componentes da imagem servem aqui como suporte fluído, informe, dissolução do figurativo na constituição de uma paisagem eletrônica. Obter uma desconfiguração da imagem por "descorreções de luz" e reconfigurações A operação de digitalização das imagens (passar das imagens análogicas, pintura, ilustração, filme, para o digital) implica numa memória seletiva que conserva as sobras/ruídos das imagens. Alterações perceptivas que o artista obtem ao capturar o silêncio, o intervalo, a violência dos fluxos, ao captar o processo de constituição e dissolução das imagens.(...)
Ilusão de interatividade, confusão entre tempo real e imagem virtual que brinca com nossa "fé perceptiva" invertendo o princípio da credibilidade ao afirmar que é preciso crer na arte e em suas potencialidades para "ver" o real e não procurar na arte um decalque ou adequação ao mundo. É como se a arte contemporânea nos despertasse para realidades que sem ela nossos olhos não saberiam ver.

Essa relação entre o visível e o invisível, essa possibilidade da arte fazer ver, materializar ou configurar mundos virtuais ou "imponderáveis" é decisiva na relação arte&tecnologia quando o tecnológico torna-se condição, suporte, dispositivo para "fazer ver o invisível". Nesse sentido, os trabalhos com campos térmicos e eletromagnéticos, o registro ou representação do calor e de turbulências atmosféricas por meio de novas técnicas de visualização como a "Schlierenfotografia" (Mário Ramiro), remetem explicitamente para a possibilidade de ampliar nossa capacidade perceptiva.(...)
Descondicionamento do olho (1994 ; O quartinho ) que passa pela descontextualização das imagens e sua inserção em outro campo. Extração de fragmentos de cenas e legendas, zapping, scratch vídeo, scaneamentos, desconfigurações progressivas que constituem um movimento recorrente na vídeoarte. "Sobras" extraídas do esgoto público das imagens (televisão) onde tudo desemboca: telejornais, fições, documentários, banalidades e arte. A questão é extrair desse fluxo indiferenciado algo que escaparia ao massacre visual e combinar o indiferenciado com o mais pessoal: a televisão/memória pessoal do artista, home-vídeo, registros particulares. É nessa interseção do subjetivo/objetivo, público/privado que pode eclodir um sentido.É preciso "crer para ver" (Ronaldo Kiel), postulado da arte contemporânea que viola as leis naturais e o realismo e cria um mundo ou paisagem virtual. Roupas que balançam numa imagem vídeo, varal eletrônico em sincronia com um vento que sopra fora da tela. Ilusão de interatividade, confusão entre tempo real e imagem virtual que brinca com nossa "fé perceptiva" invertendo o princípio da credibilidade ao afirmar que é preciso crer na arte e em suas potencialidades para "ver" o real e não procurar na arte um decalque ou adequação ao mundo. É como se a arte contemporânea nos despertasse para realidades que sem ela nossos olhos não saberiam ver.
Essa relação entre o visível e o invisível, essa possibilidade da arte fazer ver, materializar ou configurar mundos virtuais ou "imponderáveis" é decisiva na relação arte&tecnologia quando o tecnológico torna-se condição, suporte, dispositivo para "fazer ver o invisível". Nesse sentido, os trabalhos com campos térmicos e eletromagnéticos, o registro ou representação do calor e de turbulências atmosféricas por meio de novas técnicas de visualização como a "Schlierenfotografia" (Mário Ramiro), remetem explicitamente para a possibilidade de ampliar nossa capacidade perceptiva.Perceber os campos de forças num espaço, significa captar as diferentes qualidades desse espaço, ou dito de forma literária, por D.H. Lawrence: "lugares diferentes têm diferentes emanações, diferentes vibrações, diferentes exalações químicas, diferentes polaridades". As "fotografias" de Mário Ramiro documentam essas "qualidades" imateriais existentes ao redor de espaços e "objetos". A partir de esculturas térmicas (materiais) construídas pelo artista, revela-se um "volume imaterial irradiado no espaço", e que só é possível captar por meio de sistemas técnicos como a "Schlierenfotografia" que "revela" configurações atmosféricas, turbulências, "materializa" o ar em imagens-auras.
"lugares diferentes têm diferentes emanações, diferentes vibrações, diferentes exalações químicas, diferentes polaridades".
(...)
A idéia de criar zonas e ambientes em que o espectador está sob "influência" de campos de força, campos eletromagnéticos, térmicos, tem ressonâncias estéticas, a proposta de criação de campos de influência em que a arte e o artista produzem alterações perceptivas e transformações imateriais.
Como mobilizar o espectador? Transe e inserção no espaço da obra. Criação de um espaço diferenciado por meio da reverberação do som. Criar um "campo". Inserir o público no ambiente. Sensores captam e reverberam o movimento dos passos, o desafio é fazer sentir o corpo no espaço ecoado e inserir o olho no fluxo das imagens. Colocar o espectador "em fase" com a obra.Quanto se pode multiplicar um espaço? Como atingir a carne das imagens? Indo num sentido oposto de uma aposta na "desmaterialização" e "despotencialização" das imagens, algumas propostas contemporâneas buscam, no cruzamento ente arte e tecnologia, atingir a um reencantamento, do mundo, um novo pathos, uma "metafísica das sensações" (José Gil).A relação da arte-tecnologia é indissociável de um quadro científico e cultural que passa pelos mais diferentes saberes: informática, neurociências, cibernética, design, com uma valorização das ciências do vivo, em que o modelo biológico cruza com o maquínico, o industrial, o informático.A biologia como campo de problematização do vivo traz conceitos decisivos, como os de auto-organização, morfogênese (gênese da forma), o modelo das redes neurais. Estes conceitos, trabalhados no campo da arte, produzem efeitos surpreendentes.Podemos falar da aparição, nos anos 90, de ready mades biológicos, objetos/seres híbridos produzidos por uma "arte evolucionária" que toma a evolução biológica e as proposições da bio-tecnologia como questões a serem trabalhadas pela arte. A própria imagem digital ganha hoje características do ser vivo, inserindo-se no que poderíamos chamar de um "teatro da individuação", a auto-produção da imagem por metamorfoses, anamorfoses, a sua capacidade de se auto-organizar, evoluir e se individualizar , como as imagens fractais e outras imagens de síntese.
Se, hoje, podemos falar de um desenvolvimento pós-biológico do vivo (clones, próteses, implantes), que co-evolui com a tecnologia, podemos falar também de uma co-evolução da arte com as tecnologias emergentes na produção de uma bio-estética, uma estetização do vivo.É como entendemos o trabalho no campo da "arte evolucionária" (Wagner Garcia) cujo suporte são os laboratórios de biologia molecular e as imagens e holografia de síntese usadas para dar visibilidade (imagens tridimensionais) a seres microscópicos. Uma proposta que busca aspectos estéticos em funções biológicas e sistemas cibernéticos atuantes em seres vivos. A holografia simula e amplia em escala visível esses microcosmos. O artista procura criar ou reconhecer seres "estéticos" como a alga que emite uma luz biológica, efeito bioluminescente que será recriado num holograma cuja base é a luz laser (Light Automata1 ). A co-relação entre luz biológica e luz holográfica, as alterações (programar uma célula) produzidas pelo artista nesses microorganismos e populações de células, indicam esse desejo da arte de ultrapassar as fronteiras do objeto e estetizar o vivo (ready mades biológicos).A problematização do maquínico e do vivo pela arte contemporânea é sintomática de uma passagem do modelo industrial e mecânico para os modelos biotecnológicos. Evolutionary Art Imaginaire , de Steven Rook, cria, por exemplo, uma árvore genealógica de uma imagem digital. Imagens que são criadas, nascem, crecem, se reproduzem (por clonagem ou mutações), envelhecem e morrem segundo uma lógica genética e o mapa de seu DNA. Um darwinismo estético que começa numa sopa primordial feita de equações matemáticas que darão origem a diferentes padrões de formas e cores. A imagem ganha características do vivo da mesma forma que o vivo torna-se objeto estético.

arte e tecnologia numérica_questões teóricas

A interactividade (1) - antecedentes *

Fernando José Pereira


A interactividade aparece como uma das naturais e mais problemáticas questões a levantar a propósito do objecto artístico quando integrado no ambiente daquilo que comummente se optou por designar "novas tecnologias".
Antes de mais, e porque nada surge extemporaneamente, devemos referir alguns dos antecedentes importantes para o aparecimento desta nova categoria. Sejam eles de carácter tecnológico, social ou psicológico. Em conjunto criaram as condições para o surgimento da interactividade como factor de charneira entre um passado recente e o presente.
A implementação de uma sociedade mediatizada nos últimos trinta anos foi sendo potenciada pelos sucessivos avanços tecnológicos introduzidos nas máquinas de comunicar. Ao carácter quase primitivo do telefone foram acrescentadas características de incrementação da comunicação, primeiro com a vulgarização do rádio, e depois da televisão. Se os primeiros dois artefactos referidos não são enquadráveis na estratégia de alargamento produzida pela sociedade mediatizada, a televisão afirma-se como um dos pilares mais importantes, senão o mais imponente objecto de comunicação alguma vez tentado até aos nossos dias.
Depois de um início próximo de realidades ligadas ao processo da narrativa (como veremos adiante torna-se determinante realçar a diferença entre narrativa e interactividade) em que o tempo é sempre apresentado no passado, ou seja, um referente que já foi realizado e agora tematizado, a televisão evolui para uma realidade que se apresenta como "impression of reality", um tempo que se quer instantâneo. Uma incursão em directo no tempo que é apresentado.
Produz-se um corte epistemológico com uma tradição de base em narrativas orais e com evolução determinante ao longo do século XX, nomeadamente, com o cinema. A ficção do presente apresentada pela televisão através da sua lógica "live" opõe-se determinantemente a uma lógica apresentada pelos media tradicionais. A uma representação das histórias do mundo, a televisão opõe uma apresentação dessas mesmas histórias. A uma representação de outros locais, a televisão apresenta uma visão partilhada dos locais. A televisão altera radicalmente a relação de causa e efeito, bem como a noção de acção que tínhamos relativamente aos media que ficcionam a realidade como passado[1].
Ao instituir a apresentação do aqui e agora —ilusão de instantaneidade temporal— como modo de fazer, está a colocar a ênfase numa relação que se pretende individualizada, subjectivada. A passagem das narrativas é agora compartilhada por dois territórios distintos: de forma tangível, oral ou impressa, tradicional e historicamente enraizada no modo civilizacional que nos rodeia, ou então de forma virtual através dos dispositivos electrónicos mediatizados pelos monitores.
Esta nova lógica construtiva da realidade permite a assunção das máquinas como constituintes de "eu(s)" e "tu(s)", para metaforizar o contacto humano face a face. Segundo a perspectiva linguística de Benveniste[2], passa-se para uma relação aparentemente personalizada e baseada na comunicação directa estabelecida entre duas pessoas, isto é, a existência de um "eu" e de "tu/vocês" como componentes essenciais para o estabelecimento da comunicação. Emissor e receptor "enfrentam-se", olhos nos olhos na presença de uma apresentação televisiva. Todas as outras cambiantes (ele/ela/esse/eles…) se tornam absolutamente indistintas, sem importância comunicacional, uma espécie de não pessoas[3] que não interferem na comunicação agora privilegiada. O "eu" pode neste novo processo comunicacional ser protagonizado e preenchido por qualquer "voz", incluindo a máquina.
Mas de que comunicação falamos, então. Não de uma conversa face a face em que o "eu e o "tu" são tangíveis e podem e devem utilizar as várias cambiantes de protagonismo ao longo da comunicação estabelecida. Aqui, a comunicação é mediada por um monitor e a legitimação do emissor, por clara associação a estruturas de poder[4], é formada de forma quase inconsciente pelo receptor. Frente a uma tangibilidade posiciona-se agora uma imaterialidade virtual e de controle. Segundo os psicólogos Berger e Luckman trata-se daquilo que designam por "paramount reality", a sensação de uma presença num aqui e agora que se "impõe sobre a consciência de uma forma intensa, maciça e urgente". Existe uma aproximação ao conceito de imaginário que tem duas vertentes teorizadoras. Em primeiro lugar o imaginário de Cartoriadis, que este define como imaginário social instituído:
“Imaginario que asegura la continuidad de la sociedad, la reproducción y la repetición de las mismas formas, que en lo sucesivo regulan la vida de los hombres y que permanecen hasta que un cambio histórico lento o una nueva creación masiva viene a modificarlas o a reemplazarlas radicalmente por otras.” (Castoriadis, 1996)
Mas também, de um outro ponto de vista, o imaginário de Lacan, no sentido da “desrealização”, que é efectuada no eu ao depositar a sua confiança e até identificação no outro[5]. Esta relação com um interlocutor virtual vai trazer alterações consideráveis na sociedade mediatizada e da informação que vivemos.
"The claim is not that television and a computer-supported cyber culture are less authentic than "real" discursive exchange between human beings. It is rather that socially constructed reality is already fictional and that virtuality is an aspect of that fictionality that has come to be more and more supported and maintained by machines, especially television and the computer". (Morse, 1998)
Existe uma diferença fundamental entre a televisão e os novos media tecnológicos perante os, chamemos-lhe assim, media tradicionais. O primeiro é directamente responsável pela manutenção de um discurso de presença - live - que ocasiona um problema grave de emissão/recepção em loop constante, alterando a relação temporal existente relativamente à reificação acelerada da noção de referente. Acrescentamos um outro nível à relação entretanto apresentada. A dualidade desequilibrada entre o "eu" maquínico e proeminente e o "tu" afasta-se, decisivamente, da realidade construída entre dois sujeitos de conversação. Aqui o componente "tu" existe como genérico e impessoal. Pode ser endereçado a qualquer segmento social ou de mercado, não é fundamentalmente a possibilidade individual que se encontra em campo, antes, uma noção de colectivo que encontra alguns paralelos históricos ao longo do nosso século.
Sobre esta noção de emissão, encontra lugar o instalar confuso de uma miscigenação entre acontecimento e notícia. O acontecimento encontra a sua desvalorização significacional no momento em que é, apenas, valorizado como produto "em directo", cedendo logo o lugar a outro e a outro. Apesar da vastidão de campo torna-se necessário um desencadeamento de acontecimentos organizado temporalmente. A acção, no sentido semântico do que se passou no acontecimento, deixa de existir sendo substituída pela acção de carácter cinematográfico, ou seja, o presente absoluto, o desenrolar contínuo do tempo real.[6] Esta necessidade absoluta de presente ou, se quisermos, de "tempo real" é consequência imediata do aprofundamento tecnológico da sociedade mediática. A relação estabelecida com os acontecimentos através da mediação televisiva altera, desta forma, o conceito de verdade atribuída ao longo do século à imagem surgida através do negativo.
A imagem mediatizada transmitida, hoje, pelos media, em tempo real, é apenas constituída por combinações de algoritmos matemáticos totalmente manipuláveis. Será, talvez, a alteração mais radical operada na imagem e sobretudo na sua recepção. O "tu" a que são dirigidas as imagens televisivas reage passivamente: a consciência da possibilidade manipulatória existe em cada um, mas de forma impotente. A acumulação imagética produz significações metafóricas das relações de poder, "o que aparece é bom, o que é bom aparece", (Agamben, 1990) que potenciam uma clara alienação linguística por parte dos receptores.
Toda a estratégia de tempo real produzida pela televisão e incentivada pela possibilidade interactiva - o telecomando afirma-se como uma das principais formas de interacção aproximativa entre o "eu" e o "tu" - configura o papel desenvolvido pela televisão como um estádio, talvez o decisivo, na aproximação e apropriação a uma realidade em que as relações interpessoais e sobretudo com as máquinas se farão de forma intensa. A virtualidade de uma partilha dos acontecimentos em tempo real apresentada pelos media, antecipa a chegada rápida da imersão interactiva que se está agora a desenvolver em termos de sociedade de informação, sobretudo mercantil.[7]


1] Relativamente a esta questão citamos o seguinte: "as a result, we are increasingly immersed inside a world of images - acoustic, iconic, and kinesthetic - capable of interacting with us and even directing our lives in the here-and-now, or rather, since the advent of instant decompression and processing via computer, in virtual space and "real time". Images have been transformed from static representations of the world into spaces in wich events happen that involve and engage people to various degrees in physical space." (Morse, 1998)
[2] "Discourse is every utterance assuming a speaker and a hearer, and in the speaker, the intention of influencing the other in some way. It comprises all the genres in wich someone proclaims himself as the speaker and organizes what he says in the category of person." (Benveniste, 1971)
[3] Por associação directa com o conceito de não lugar teorizado por Smithson e Augé, em que a principal característica identitária é paradoxalmente a sua falta de identidade.
[4] Uma das características fundamentais do capitalismo avançado tem sido o relegar para o total anonimato a massa de receptores que interage apaticamente com o media em causa - a televisão. A activa participação é transfigurada em passividade absoluta, joguetes de um jogo a que não pertencem. Sobre a noção de "ser qualquer" desenvolvida por Giorgio Agamben parece-nos importante revelar os seus principais traços constitutivos, uma vez que uma pura interpretação semântica poderia conduzir a equívocos desnecessários. O ser qualquer é portador de uma potência escondida. Sobre este conceito escreve o tradutor português:"Giorgio Agamben propõe neste texto que se articule o lugar, os modos e o sentido da experiência do presente numa forma de comunidade que subsuma uma ética e uma política à altura do nosso tempo: a comunidade que vem…formada por singularidades quaisquer, o ser que lhe corresponde é o ser qualquer. Em vez de procurarem uma identidade própria na forma da individualidade, os homens devem fazer do modo como são - o ser assim - uma singularidade sem identidade e perfeitamente comum…Como Bartleby de Melville, que não escreve outra coisa que não seja o seu poder de não escrever e, assim tem a experiência da linguagem enquanto tal, o ser qualquer é também aquele que pode a sua própria impotência".
[5] O imaginário em Lacan constitui a primeira fase de desenvolvimento - "o stage mirror"- uma espécie de registo pré-verbal cuja lógica é essencialmente visual e que se afirma como um primeiro momento de alienação. A consciência da existência do eu e do outro, ou se quisermos de ela própria como outro, dá-se numa criança quando reconhece pela primeira vez o seu reflexo num espelho. Que, contudo, é um reconhecimento falhado, já que a coerência com o sujeito falha. Este auto-reconhecimento através de uma imagem externa define-se então como uma forma de auto-alienação. As restantes duas fases do esquema de Lacan são o simbólico e o real.
[6] Trata-se daquilo que Jean Baudirllard designa por "greve dos acontecimentos": "É como se os acontecimentos transmitissem uns aos outros a palavra de ordem de greve. Pouco a pouco, todos desertam o seu tempo, transformando-o numa actualidade vazia, onde só tem lugar o psicodrama visual da informação…O facto de já não ser o acontecimento a produzir a informação, mas sim o contrário, tem consequências incalculáveis." (Baudrillard, 1995)
[7] Debord na análise que produziu em 1967 no seu livro sobre a sociedade do espectáculo tinha toda a razão quando afirmava: "o espectáculo é o capital num tal grau de acumulação que se torna imagem"


*Primeiro de uma série de textos sobre as questões teóricas em torno das práticas artísticas numéricas.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007


Louise Bourgeois Cell (Glass, spheres and hands) 1990-1993 Glass, marble, wood, metal and fabric 218.4 x 218.4 x 210.8c, Copyright Louise Bourgeois, 1990-1993/VAGA. Permission of Viscopy Ltd, Sydney 2000

louise bourgeois

louise bourgeois

Louise Bourgeois

Louise Bourgeois propõe a representação do corpo como veículo de uma enfabulação sem fim, enquanto estratégia única de( não)reconstrução da memória. Essa irrepresentabilidade da memória é um espaço ao mesmo tempo de resgate da representação, que assim se liberta de uma condição de substituição do acontecido(o hipotético representado). De modo mais simples dir-se-ía que cada forma ,nesta artista americana de origem francesa, nos conta uma história que prolongamos(e se prolonga) na medida em que vamos percepcionando cada contorno sem ser parte de uma linguagem, onde cada história existe desligada de todas as outras emanadas de outras formas.E cada conjunto formal é um universo estilístico própio.(Existe e nunca existe uma linguagem/estilo bourgeoisiano.)
Não é pois possivel pensar na arte de Bourgeois sem nos reportarmos áquilo que tem como fulcro a junção curto-circuitante da representação e da fisicalidade metafórica do corpo -- ou a representação de um espaço de segredo indesvendável como a«memória interior»(cujas fronteiras são determinadas apenas pela autora, desaparecendo portanto o interior e o exterior) – com a explosão das fábulas elas mesmas, autoreflexivamente; numa ampliação do sentido do corpo e, claro, da memória imateralizada.
Como poucas obras neste seculo, o que Louise Bourgeois nos propõe é, para além da superação da forma composicionalmente cristalizada enquanto forma racional e denegadora do mito, uma modalidade de representação do corpo, e do corpo da memória, onde o mito, como na sabedoria grega, nos interpreta para além da condenação da poesia em Platão, na República. O mito é como diria Marx, uma dominação das forças da natureza na imaginação.
Roberto Calasso assim escreve num dos ensaios do seu livro I Quaranta Nuove Graddini: «a oposição extrema seria esta: de um lado, um conhecimento a que hoje chamariamos de algorítmo (...); do outro, um conhecimento metafórico, mental, em que o conhecimento é um phatos que modifica o sujeito que sabe, um saber que nasce da imagem, do eidolon,e que culmina na imagem, sem nunca se afastar dela nem admitir um saber que lhe seja superior».Também aqui não há nenhum conhecimento superior que force a clarividência de um sentido, seja uno ou plural, para as obras de Louise Bourgeois, porque «se o mito é uma sequência de simulacros que ajudam a reconhecer os simulacros, é ingénuo pretender interpretar o mito, quando é o própio mito que nos interpreta»(Roberto Calasso, idem).
È pois sob a égide desse conhecimento metafórico que tento definir uma expressão estética que toma o corpo --- a memória e a memória do corpo --- como referente, e faço-o essencialmente por três vias. Recuando ás neovanguardas dos anos 60 e 70, reintrepetando as suas contraditórias direcções parte da sua riqueza) e expurgando-as, digamos assim, de vários estereótipos que se lhes colaram, como sejam a ideia teimosa da morte do autor, a da desmaterialização da arte, a da fusão entre a arte e a vida, ou a ideia ainda mais vazia e inoperante da progressão artistica sob o ritmo das rupturas.
Como primeira via, contra a tese da desmaterelização da arte avanço, por exempo, com a necessidade da presença da Forma e o reforço do lugar do espectador(bem como do autor). Esse é o primeiro dos princípios necessários para a efectivação de uma arte «do» e «com» o corpo.«Da» memória e «com» a memória. Mas deve considerar-se, subsequentemente, que toda a forma é, nos termos de Georges Bataille, informe.
Este pressuposto começa por ser demasiadamente evidente na obra paradigmática de Jackson Pollock, nomeadamente. Com ele e a partir de Bataille, relacionam-se os estudos teóricos de Rosalind Krauss, que propõe:«vamos pensar o “informe”não como uma entidade oponente à forma, mas antes uma possibiidade operando desde o fulcro da forma para esta se apagar a partir de dentro»(The Optical Unconscious,1993).
Do mesmo modo, segundo eixo argumentativo, toda a representação do corpo deve(considerar-se e)considerá-lo como um ser mortal, senão ficamo-nos pelas representações corporais idealizadas de que, entre outras movimentações, o fascismo se serviu e se serve. Por outro lado, em terceiro lugar, toda a representação do corpo pressupõe a construção duma identidade, mas tal construção tende, ao mesmo tempo que se edifica, à refutação e ao apagamento própio( escreve Julia Kristeva no seu Pouvoirs de L´Horreur,1980, ensaio sobre a abjecção: «”Eu” expulso-me a mim mesmo, cuspo-me fora, abjecciono-me a mim mesmo no seio do movimento em que “Eu” pretendo estabelecer-me. (...) dou nascimento a mim mesmo por entre a violência de soluços e de vómitos»).
Devemos ainda considerar que o estabelecimento de uma vontade programática de superação da fórmula arte e, consequentemente, uma vontade programática de superação da transparência óptica e pictória como elementos de presentificação da obra de arte,são factos determinantes de toda a arte moderna desde as vanguardas históricas( mas não confundir este programa com a mera desmaterialização da arte). Passando posteriormente esta carta de intenções, este superacionismo de mera visualidade e da forma concreta a alimentar toda a neovanguarda dos anos 60 e 70, desde o minimalismo à reacção feminista, instante doutrinário precursor das formas politizadas despontadas na primeira metade da decada de 80. O processo que denomino de contravisualidade( que passa por retirar a representação da mera função de mediação, ainda que se a devolva ao indizível ) é então um dos temas do séc.xx (mais do que a cosmogonia, de que fala Thomas McEviley, relacionando a modernidade, na sua heterodoxia, com uma busca das raízes harmoniosas do universo e do sentido do ser ), contravisualidade que, assim, preenche os espaços desde o formalismo até à actual arte do corpo --- que se distingue da body art a partir do instante em que considera o corpo, visão partilhada por muitos artistas, mais do que uma obra de arte, um campo de batalha.
Não há, como vimos, um primado da forma sem o seu correlativo entendimento metafórico. Mas mesmo admitindo um primado da forma enquanto entidade sem conteúdo e auto-referencial, ela não existe sem uma matricial perturbação psicológica, uma sensação de incompletude( a contravisualidade é aqui um prolongamento da visualidade ) e enfermidade que chamaremos de ansiedade, histeria ou angústia --- utilizando as palavras de Leo Steinberg que é, a este propósito, muito claro: «A arte moderna (...) nasce permanentemente da angústia, pelo menos a partir de Cézanne. Picasso afirmou que o fundamental em Cézanne, acima das suas telas, é a angústia. Para mim uma das funções da arte moderna é a de transmitir essa angústia ao espectador». De novo, encontramos nesta radicalização uma contravisualidade programática, e mais do que isso: uma contra-representacionalidade ( que é antes uma representacionalidade resgatada) e uma aversão absoluta à transparência.
É isso que unifica o disperso corpo de trabalho de Louise Bourgeois, desde o descritivismo do imperscrutável --- que a autora tenta, ou parece que tenta, desbravar, principalmente nos desenhos,aparentemente mais narrativos --- à desconstrutividade pós-minimal( para lá de qualquer sinal de pureza ) das esculturas.
Aqui sabemos que estamos perante algo que nega a experiência tal como proporcionada pelo diferimento inerente ás imagens representacionais; representa-se o que passou ou parte da memória e eventos presentes --- pelo menos seria assim até Bourgeois abrir outro caminho: o da coincidência e da simultaneidade entre o que se passou e não se passou, entre o passado e o futuro desconhecidos. Mas nunca é somente o corpo, a fisicalidade da escultura, o tema destes trabalhos --- perspassa por estas peças sempre algo de indecidível, o referido interior da memória. Espaço sem espaço, local sem habitabilidade fixa ou delimitável, sem reminiscência possível. Ou seja, nunca um «isto foi», em Louise Bourgeois, pode ser trazido para o objecto.
Concretamente disto são testemuho as «Cell»,environments que a artista tem produzido ao longo da década de 90: estas celas cumprem a função de nos informar que o interior da memória é um espaço habitado ( e a habitar pelo receptor ), sem sentido porquanto toda a temporalidade é de irrepetível e de impossivel restauração. Logo, presentificação.
A insustentabiidade (e autorecusa ) interpretativa das «Cell» de Bourgeois sinaliza a impossibilidade de reconfigurar a memória como um lugar com sentido traduzível por outros meios que não os da sua vivência já perdida( e conceptualmente definida num quadro que pode ser, por exemplo, o da neurose), e esse sem-sentido e sem-figura da memória é a prova de como esta ultrapassa a figuração do corpo e da sexualidade ( tema central de alguma arte de hoje que, noutro plano, determinados processos tecnológicos, mediáticos ou inclusivamente clínicos - de diagnóstico, por exemplo - cada vez mais e melhor permitem conhecer).
Diria que, em Louise Bourgeois, a garantia da sanidade que a arte assegura está no facto de elevar o não-sentido a um estatuto de plena autonomia estética: daí o seu cunho pessoal, o seu estilo sem código e uniformidade, o seu universo - demore o tempo que demorar a ser percepcionado (e, pelos vistos, muito tempo demorou), ele existe nos seus mais diversificados contornos. Por isso a arte de Bourgeois é dotada de uma autonomia estética associada a uma experiência de vida. Mas o seu irrepresentável ainda está presente e existe. Por isso pode dizer-se: sem figuração da memória e sem reconfiguração desta em forma de «obra», repetindo Foucault, seria a loucura o terreno disponível. Mas tal não acontece nesta escultora, apesar do seu trabalho processado no fio da navalha.
Ao ultrapassar os problemas fechados da vivência e da representação do corpo, bem como os da sujeição às várias formas do poder ( falocêntrico,entre outros ), Bourgeois afasta-se quer do pictorialismo de Sue Williams ou de Marlene Dumas, quer do neoaccionismo de Jean Antoni. Ou mesmo da mediatização enquanto retrato cruel do corpo e do seu funcionamento interior como obra de arte, tal como veremos nas instalações actuais de Mona Hatoum, para citar algumas artistas de recente revelação.
Mas alguns paralelismos importa sublihar e contextualizar. E Louise Bourgeois, em peças de décadas anteriores ou em trabalhos últimos, tal como em artístas Mona Hatoum, ou mesmo Jana Sterbak, o corpo não é proposto como um território completamente liberto e isolado. O que significa que junto à sua configuração / reconfiguração se imiscui a barreira fisica e significacional do« espaço»(para já não falar da passagem do corpo à condição de conceito) – o espaço interior do corpo, como em Hatoum, ou em entidade potencial para sucessivos actos de transgressão ( dos constrangimentos do própio corpo ), como em Jana Sterbak, por exemplo.
E teremos uma concepção multipla destes temas –que pode ser de natureza fisica( Mona Hatoum )ou simbólica( Louise Bourgeois ). Numa das suas obras paradigmáticas, que aliás deixou à beira do muito consagratório «Turner Prize» de 1995(não por acaso entregue a outro artista pós-escatológico, o mui jovem e famoso Damien Hirst), Mona Hatoum introduziu por todos os orifícios do seu corpo (desde o umbigo à boca, passando pelo ânus, nariz e vagina) uma minúcula câmara que registou os respectivos circuítos internos. A obra , a imagem real deste corpo interno, é depois exibida num espaço fechado(sinalizando ou registando os constrangimentos do corpo territorializado, em termos linguísticos, como diria Barthes, de género, ou da sua organicidade ), mas é exibida em diferido, videogravada: em segundo grau . É um produto de um outro produto da cultura mediática de massas, algo que se condena a reger de novo, apesar do impacto inicial, pelo primado do«ver» que, como diria Debord, se tornou o mecanismo sob o qual assentou a nossa civilização ocidental.
O corpo deixa de estar uma vez mais presente. Em seu lugar está uma representação, uma prótese, um substituto ( e estamos mesmo no campo do vivido afastado em representação, para citar de novo Debord) inevitavelmente esteticizado. Trata-se, diferentemente do que se passa em Louise Bourgeois, de uma passagem do material para o imaterial(Lyotard), enquanto nesta se passa do material( quase sempre, ainda que sem contornos precisos, autobiográfico) para algo que supera a imaterialidade – dissemo-lo, para o terrreno irreconstruível da memória, da infância e das relações familiares. Ou, de uma forma mais completa, em Bourgeois tudo - corpo, memória(biográfica), neurose e terapia(ou, pelo menos, exorcização) -- coexiste.
Assim, se tivermos de pensar numa autora actual programaticamente aproximável a Louise Bourgeois, melhor será falarmos de Jana Sterbak. Nesta, o corpo é algo cuja transgressão de limiares não se processa sem a consideração e inteligibilidade do constrangimento do espaço – circundante ou simbólico, como vimos. Mas a hibridização antevista em Sterbak( do corpo com o espaço, do corpo e seus fluídos identitários com os objectos de arte, do corpo e género, etc), não correponde a uma atenção, em Louise Bourgeois, pela problemáticaa exclusiva da sexualidade.
Nas representações de Bourgeois, com efeito, outros factores intervêm, para lá da intrínseca organicidade e do tópico dos géneros, como por exemplo o medo e a história pessoal ( ou memória, como tenho vindo a defenir ). Numa obra paradigmática, como«Cell (Choisy)», de 1990-1993, Bourgeois edifica nos parâmetros do environment uma réplica da casa paterna; aí num primeiro plano, suspende-se uma guilhotina. Nesta obra não se enuncia saída outra para o sentimento de crise neurótica senão a da abolição da temporalidade como modelo de exorcismo (que, contudo ou por isso mesmo, não esconde o passado). Neste exorcismo, neste esconjuramento do medo, deixa de haver vida presente ou passada( não vá uma trazer, inevitavelmente, a presença da outra), ou, genericamente, presente e passado, pois, como escreve Jacques Soulillou, «o “passado guilhotina o presente”, esse mesmo passado que jamais cessa de assediar esta obra ou de bater insistentemente à porta do presente, e que este enfim eliminará por sua vez – o presente aí guilhotinando o passado»( Jacques Soulillou, L´Impunité de L´Art, 1995).
Esta abolição do tempo, irreversível aniquilamento da temporalidade( pelo menos tal é intentado), afasta entretanto a obra do plano da representação do corpo, como se disse, para a situar num outro território interpretativo – a contextualização na histeria. Ou no conflito ( que para alguns autores não o é ) entre os espaços da neurose infantil (terreno do individuo e fechado) e os do chamado acesso directo à desterritorialização (do) inconsciente(terreno colectivo e aberto, porque fala da vida e da sexualidade sem as particularizar neste ou naquele indivíduo).
A neurose infantil, em Bourgeois, tem matizes autobiográficas ( o factor individual ) e ganéricas. Quanto ao aspecto genérico, toda a obra de Bourgeois pode ser lida como uma forma de guerrilha contra o primado do falo. É Freud quem define a génege deste problema: «O caracter principal desta “organização genital infantil” é simultaneamente o que a diferencia da organização genital definitiva do adulto. Reside isto em que, para os dois sexos, um só orgão genital, o orgão masculino, desempenha um papel. Portanto, não existe um primado genital, mas um primado do falo» (L´Organisation Génitale Infantile, 1923).
Retomando o outro tópico, várias formas de histeria se podem aqui configurar, desde as histerias de conversão (conflitos psíquicos associados a sintomas físicos), até às histerias de angústia: necessidade da arte como garantia da sanidade, frase que a autora inscreve num objecto de uma outra cela - «Cell 1», 1990 -, passando ainda pela necessidade de conceber o presente como elemento que destrói o passado, ou como elemento que destrúindo-o, exorcisa o medo sinalizado pela figura do pai. Uma obra de 1974 para tal aponta e intitula-se precisamente « The Destrution of the Father ».
Sabemos também que a histeria da angústia é figurada num objecto exterior, numa fobia. E é precisamente esse objecto exterior ( o pai e a sua amante, concretamente )que a autora deseja esconjurar. Registe-se apenas que há uma clara ligação entre o despontar ou redespontar do complexo edipiano, para que a autora aponta no titulo do seu trabalho, e a histeria. Nos depoimentos insertos no catálogo da retrospectiva de Paris, escreve a autora sobre esta obra: « Le but de La Destruction du père était d´exorciser la peur. Une fois que ça été présenté au public – et bien je me suis sentie différent. Je ne veux pas utiliser le terme thérapeutique mais en fait, exorciser cést une enterprise thérapeutique. Laraison de cette oeuvre était la catharsis ou la purification».
«The Destruction of the Father» pode ainda ter uma leitura associada ao complexo de castração, até porque a escultura se assemelha a uma vagina com dentes, a uma reentrancia preparada para a mutilação. Laplanche/Pontalis, no clássico Vocabulário de Psicanálise, descrevem esta forma de complexo de castração a partir da expressão inveja do pénis: «esta inveja do pénis assume no decorrer de Édipo, duas formas derivadas: desejo de adquirir um pénis dentro de si (principalmente sob a forma do desejo de ter um filho) e desejo de fruir um pénis no coito. A inveja do pénis pode redundar em numerosas formas patológicas ou sublimadas». Podemos, portanto, considerar, em síntese, que «The Destruction of the Father» é uma forma estética patológica que, enquanto forma estética, se apresenta sob modo sublimado (ainda que alguns autores contestem a presença analítica de uma sublimação na autora, a qual dizem tomar os processos inconcientes por via directa, pulsional e não desviante de energias, como a sublimação classicamente, por imperativos morais e societais, o requer).
Bourgeois ocupa , por inversão de papéis, o lugar do rapaz neste esquema da angústia da castração ( pois, normalmente, é o rapaz que teme o poder do pai no acto potencial da castração como represália às suas descobertas sexuais). È ela que, entretanto, teme o pai ( e não deixa de contar inúmeras histórias sobre o seu sadismo), mas enfrenta-o com as suas armas de filha e de mulher. Como esta vagina com dentesda destruíção do pai não se trata de uma representação sádica do referido desejo de «fruir o pénis», desta obra se pode dizer que quer apenas colocar a mulher numa posição de força perante todo o tipo de agressões ( daí a aderência do feminismo a alguns momentos da carreira de Bourgeois – o inverso já é, de todo, problemático).
Contudo, a catarse e a purificação referidas parecem confinar-se como que a um beco sem saída. Parecem apontar para a sua própia impossibilidade, pelo menos a julgar pelas própias palavras da artista. Sobre o conjunto das suas «celas», escreve Louise Bourgeois:«representam diferentes tipos de dores: fisicas, emocionais e psicológicas; mentais e intelectuais. Nenhum remédio nem desculpa para a dor. Eu sei que não a posso eliminar nem suprimi-la.La douleur, c´est mon affaire» ( Louise Bourgeois, Musée d´Art Moderne de la Ville de Paris, 1995).
Vejamos agora, retrospectivamente, como é que Louise Bourgeois se coloca perante a arte que acompanhou nos anos 60 e 70, nomeadamente a transição oposicional do minimalismo para o pós-minimalismo. Onde o minimalismo reivindica, com toda a intensidade, uma evidência estética essencialista, fenomenológica, neotranscendental (ou irracional) e táutológica para a obra artística, depreendemos uma sua inter-relação com o programa conceptualista de matriz linguística. Como vimos atrás, dois tópicos que Louise Bourgeois parece sem dúvida recusar – a que juntámos a imagética inerente aos processos da reprodutibilidade técnica ( a media landscape, de que fala Muntadas ).
Neste campo algo autista, de exaltação de uma fenomenologia programática para o campo da arte, sua definição e sua praxis, vamos encontrara autores como Donald Judd, Dan Flavin, Jonh McCracken, Carl Andre, Agnes Martin, Robert Barry, Joseph Kosuth, Sol LeWitt, Ellsworth Kelly, Walter de Maria, On Kawara, Douglas Huebler, Art & Language ou Lawrence Weiner. A mudança de paradigmas operada desde estes autores para um conjunto de pesquisas onde sobretudo gostaria de destacar Louise Bourgeois e Eva Hesse é constituída por novas atitudes coorespondentes a novas ocorrências políticas, ideológicase, claro, estéticas.
O minimalismo radical e fenemonológico de Judd, Andre e Flavin parte da noção de objecto específico auto-referencial. Da recusa da distinção disciplinar escultura- pintura e da negação da autoria artistica( isto é, da manualidade )em favor da serialização e da fabricação industrial como forma de aportar a uma essência universalista e imtemporal do objecto de arte. Como sabemos, este minimalismo fenemológico opera na convicção de que a arte é uma pré-existência à sua materialização, no abandono da narratividade e da significaçãod das imagens. Também o conceptualismo linguístico se procura legitimar a partir do seu interior, ou legitimar o que é e não é arte através do uso da linguagem. Esta matéria priveligiada originará aquilo que alguém chamaria de estética administrativa. Em contraposição evidente, o pós-minimalismo abandona, por assim dizer, o puritanismo pragmático, individualista e simplificador que domina toda a cultura americana.
Louise Bourgeois é uma protagonista maior desta transição, quando enuncia a importância das pulsões e impressões no acto da recepção ou no momento de produção da obra, de qualquer obra, desvinculando-se dos rigores neoconstrutivistas dos recentes raciocinios de Rosalind Krauss (principalmente no seu estudo sobre Cindy Sherman), ao mesmo tempo que ultrapassou, noutro tempo e geração, a pureza greenberguiana.
Negando a fenomenologia minimal e as posturas auto-reflexivas, autointerpretativas e, principalmente, autopunitivas do conceptualismo linguístico, tal como a media landscape do neoconceptualismo (anos 80), ela abre a arte ao terreno de exercitação do que em psicanálise denominamos de id, o reservatório primitivo da energia psíquica. Seguindo-se a exigência estético-conceptual que Bourgeois remete para a valorização do primado das sensações: a produção de objectos contra a interpretação.
A perspectiva psicanalítica parece ser válida para o entendimento deste espaço de produtividade, que se pretende sem finalidade e sem censura. Contudo, um forte criticismo da interpretação psicanalítica em torno de Bourgeois surge de Bernard Marcadé, comissário da mega-exposição Fémininmasculin:Le sexe de l´art. Considera Marcadé («Le devenir-femme de l´art»,catálogo ) que estas interpretações psicanalíticas redundam falaciosas. Sobretudo, em torno de uma arte desterritoralizada das configurações contemporâneas de matérias e formas, e que se reivindica a si mesma como terapia formulando uma relação directa e sem mediações com o inconsciente.
Mas podemos em seguida perguntar porque é que esta reivindicada terapia (exorcisasão do medo, arte como garantia de sanidade,etc ) exclui a leitura analítica? Ou porque é que exclui uma definição da criação, em Bourgeois particularmente, de acordo com os mecanismos do id, tal como definidos pela mais básica teoria psicanalítica?
Ou, quando muito e seguindo este criticismo, não será mais interessante pensar que o trabalho de Louise Bourgeois tem de passar pela leitura analítica para melhor desconstruir o própio falocentrismo freudiano? Ou o falocentrismo tout court,tão bem castigado na magnífica fotografia de Mapplethorpe, onde Bourgeois transporta sorridentemente, e debaixo do braço, domada( ou , neste caso, «dominado»), a sua escultura – falo «Fillette».Ou não será antes, retomando a presença psicanalítica, que aí, nessa imagem de Mapplethorpe, a escultora transporta debaixo do braço, vencidos, a sua queda e o seu fracasso(a inveja do pénis)?

«Mon travail à ses débuts c´était la peur de la chute,puis cela devint l´art de la chute.»
(1996-1998)
( IMAGENS SEM DISCIPLINA, Carlos Vidal, págs.54-62 )

" La Creación Plástica "

Raul Rabaça

puxando pela criatividade aos empurrões

Com mais ou menos suor, trabalho, dor e desespero, aqui estamos nós ... famintos de magia e compreenção.
E de palavras vazias está o mundo cheio.
Eu retiráva-lhe a dor e o desespero, e se pudesse vivia só de suor, trabalho, magia e amor ...
E de ideias utópicas está o mundo cheio ...
se eu pudesse agarrava me á compreenção com todas as forças e vivia só de sabedoria ...
Talvez um dia ...

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Natacha Ivanova

Natacha Ivanova, nasceu em 1975 em Saint-Pétersbourg na Rússia. Ao longo da sua formação n escola superior das Belas Artes em Saint-Pétersbourg, foi adquirindo conhecimentos e técnicas clássicas acompanhadas de uma grande liberdade de expressão.
No meu ponto de vista, acho interessante o emprego destas cores opacas de grandes vibrações cromáticas de onde se justapõem as figuras de carácter bidimensional, que a uma primeira percepção do nosso olhar nos remete a ideia de se tratar da simulação de uma colagem de recortes bem estruturados, mas em contrapartida..no lado direito da tela..apercebemo-nos de que pareçe haver um escorido de tinta propositado que reforça a presença vertical de uns elementos transpostos mas evidenciados pelos diferentes tons empregues.
Também gostei de certa forma da abordagem de duas sequências temporais diferentes terem sido "apropriadas" no mesmo espaço ilustrado.

LUC TUYMANS

LUC TUYMANS
PENUMBRA
14 JUL-15 OUT 2006


“Viajar é como estar sentado diante de um quadro que actua sobre a pessoa como um pano de fundo, a enquadra e dá uma direcção à sua viagem. Também se poderia pensar (experienciar) como um estado em que espaço e tempo se diluem um no outro. Sente-se a viagem como uma paralisação, uma constante, um caos, que surge com uma determinada precisão que não é, contudo, percepcionada como verdadeira devido à passividade do viajante. Este regista e recolhe o que experiencia. O efeito interior dos seus conceitos éticos determina aquilo que ele procura na viagem.” Luc Tuymans, Caderno de apontamentos 3, c.1978 “Penumbra” apresenta uma selecção, pequena mas representativa, de 21 obras realizadas entre 1978 e 2004, contextualizada por diversas fontes e referências. Durante a organização desta exposição houve uma permanente troca de ideias com o artista, na tentativa de encontrar uma perspectiva espacial e propor uma reflexão sobre as conexões intelectuais da pintura de Tuymans: um diálogo em imagens estáticas e móveis, em objectos e textos.
A exposição mostra dois níveis do processo artístico que se encontram intimamente ligados no acto de pintar: o processo intelectual e o processo material.
Os espaços da
Casa de Serralves, que Tuymans adaptou pela segunda vez, depois de já o ter feito para a sua exposição com Mirosław Bałka em 1998, são o palco de uma produção que rejeita tanto a arquitectura do edifício como a derivação genérica ou conclusiva de cada obra individual. Apenas o quadro que pertence à colecção do Museu de Serralves toca as paredes do edifício. As outras obras, bem como a documentação que as acompanha, estão dispostas nas duas faces de paredes amovíveis especialmente instaladas para a ocasião. A circulação por átrios, salas e corredores proporciona uma espécie de associação livre, incentivada pela lógica.", em "Luc Tuymans, Dusk / Penumbra" (cat. de exposição), Porto,Museu de Arte Contemporânea da Fundação
de Serralves, 2006.


Raul Rabaça